Rosângela Castro e
Renilda Cardinali
[Rosângela] Sou Rosângela Castro, 67 anos, lésbica, mulher de terreiro, ativista, sagitariana e vascaína. Nasci no antigo subúrbio da Central, hoje, Zona Norte, no bairro do Riachuelo. E, hoje, eu resido no Engenho Novo.
[Renilda] Eu me chamo Renilda Cardinali, nasci no bairro de Pilares, tenho 59 anos, sou mulher de candomblé, flamenguista. E, hoje, eu moro na Lapa.
[Karol] A gente começa com uma pergunta clássica:
Como vocês se conheceram?
Rosângela
Na realidade, a gente não se conheceu, a gente ‘foi conhecida’. Foi através de uma amiga da Renilda, que eu conhecia, e que achou que eu tava muito sozinha e eu precisava ver o jogo de futebol. Aí, ela me botou no grupo do futebol que ela tava organizando, na época, e eu comecei a conversar com a Renilda, e a gente se encontrou e começou. Isso já tem 5 anos.
Karol
Que incrível, caramba.
Julia
Mas você joga, também?
Rosângela
Não.
Julia
Esse grupo era de jogar, ou só de assistir?
Renilda
Eu jogo futebol há muitos anos, e eu tenho esse grupo, que ela entrou. Ali, foi todo mundo se apresentando, eu sempre peço pra se apresentarem. E aí, nós marcamos, nos encontramos, mas achei que não ia dar em nada. E, até hoje, estamos aqui, juntas.
Vocês já moraram juntas ou preferem morar separadas?
Rosângela
Desde quando a gente começou, a nossa proposta foi de não morar junto, para cada uma ter sua autonomia, ter saudade, ter liberdades. Eu já casei 6 vezes, tenho 67 anos…Então, eu acho que esse formato de casamento em casas separadas, é bem legal. E que, talvez, se a gente morasse juntas, a gente teria até quartos separados, né? Porque, por exemplo, a Renilda é extremamente organizada, e eu sou extremamente bagunceira, né? (risos) Eu acho que a gente tá juntas há 5 anos, por conta desse formato.
Renilda
Morando assim, é bem melhor. Porque eu já morei junto, já tive outros casamentos, e ela também. Então a gente achou que assim era melhor. E assim tá bem melhor, dá mais saudade.
Vocês são monogâmicas?
Rosângela
Pois é… Acho que até dezembro, a gente era. A gente, agora, tá experimentando uma relação aberta. Uma fase bem experimental mesmo. Por enquanto tá dando certo. Mas, isso é muito novo, né?
Julia
É difícil, né, ainda mais quando a gente é criada nesse sistema em que a gente aprende que tem que ser assim…
Rosângela
Uma das coisas que eu falo muito, em questão de relacionamento é que, às vezes, as pessoas têm mais facilidade de trair do que de abrir a relação. Eu acho que fica mais fácil. Não sei, se é mais emocionante… mas é menos leal. Então, a gente tá nesse experimento.
Vocês viveram várias décadas de sapatonice. Como era ser sapatão antigamente? Como era a relação com as namoradas antigamente, e como é hoje?
Rosângela
O meu primeiro namoro foi na década de 70. Eu acho que vocês ainda não eram nascidas, com certeza. (risos) E eu sou lésbica da época da ditadura braba. Então, a gente tinha códigos de identificação, locais clandestinos de frequência, bares, boates. Por questões de lesbofobia da família, eu migrei pra São Paulo em 78. Aí, a gente ia pra alguns bares, usava alguns códigos de reconhecimento, tipo relógio na mão direita. Era um reconhecimento lésbico. O tipo de corte de cabelo. E, naquela época, ainda, por desconhecimento de como poderiam ser as relações, ainda tinha muito aquela questão de ativa e passiva. Então, eu tenho essa passagem da época de ditadura para o pós-ditadura… São muitas variantes. Na década de 90, a gente começa a pregar que a gente é lésbica, sim. Eu lembro que eu me apresentava: “eu sou Rosângela, lésbica”. E as pessoas ficavam olhando para a minha cara, né? Porque, naquele momento, a gente tinha essa necessidade de auto afirmação. Inclusive, de falar a palavra lésbica. Lésbica tem a ver com poesia, com (a ilha de) Lesbos, com Safo(poeta grega) de Lesbos. Você pode ver que safada virou uma coisa ruim. E era pra ser uma coisa poética… Vieram as conferências, a gente criou uma bandeira, no princípio dos anos 2000, pra dizer: “olha, nós estamos aqui.” Antigamente, eu era ‘entendida’. Hoje, a gente já consegue usar o termo sapatão com muita tranquilidade. Mas ainda continua entre nós. Se vier alguém me xingar de sapatão, vai ser processado. E o processo, hoje, não é cesta básica, não. Eu quero dinheiro na minha mão. Viver essa mudança é muito bom, mas custa caro. Porque os nossos corpos são os corpos abatidos. Eu, por exemplo, depois da morte de Marielle, eu deixei de fazer várias coisas, porque eu moro na beira da rua. Eu sou um alvo fácil, né? Nos 4 anos de bolsonarismo, eu tinha muito cuidado. Então, eu vivi a ditadura militar e vivi a ditadura bolsonarista. E, pra mim, é muito complicado, porque eu sou ativista. Tinha aquele movimento: “Beije sua preta na rua”. A gente fazia reportagens sobre andar de mãos dadas, essa coisa toda. E hoje, quando eu vejo um casal de lésbicas, principalmente lésbicas jovens, de mãos dadas, eu fico muito assustada. Eu já tive até um embate em que a menina disse: “O que foi, nunca viu não?” E eu falei: “qual é a idade da sua mãe?” E ela: “A minha mãe tem 45.” Eu falei: “Pois é, quando a sua mãe nasceu, eu já era sapatão.”
Renilda
Ela pára mesmo, e fala!
Rosângela
E eu continuei: “Eu só tô falando isso porque, cuidado, aqui é um ponto de ônibus escuro. Pra vocês não passarem por determinadas violências que eu já passei.” Eu tenho um tiro no peito, eu tenho um estupro corretivo. Eu era virgem de hímen. Eu já me relacionava sexualmente, mas não tinha rompimento de hímen. Tive uma gravidez e tive um aborto. Então, quem vive isso, não quer que mulher nenhuma viva isso. Mas, a gente sabe que quando é um corpo lésbico, a violência é maior. Então tem todo esse atravessamento na minha vida.
E você acha que o fato de você ter vivido essas coisas, fez você ir mais para o ativismo? Isso te transformou?
Rosângela
Eu vim pro ativismo por conta disso. Na minha época, o ativismo era uma coisa branca. O feminismo branco não reconhece que o feminismo negro é um feminismo ancestral. A gente que é negra, não precisou queimar sutiã. Até porque, a gente nem tinha sutiã para usar. Então, o nosso feminismo já vem lá de trás, quando as mulheres negras saíam pra vender coisas, pra comprar carta de alforria dos filhos, dos maridos. E, além de branco, era um movimento classista. E aí, por isso que vem o movimento negro, e o movimento de mulheres negras. Porque o movimento negro também não segurou a onda das mulheres negras. O movimento feminista não segurou a onda das lésbicas. Eram todas lésbicas, mas a orientação sexual não era prioridade. Era assim: “a minha vida pessoal, o meu corpo não é a minha militância.” Se falava de aborto, de não raspar suvaco, de andar sem sutiã. Mas a gente, que é preta, nunca raspava, porque gillette era uma coisa cara, né? Andar de sutiã… a gente não usava. Nosso corpo nos pertencia até determinado momento. Mas, às vezes, a gente fazia com que ele nos pertencesse. Como quando as nossas ancestrais não queriam deitar com quem eram obrigadas a deitar. Eu venho para o movimento porque o meu corpo foi atacado, inclusive, pela família. A minha mãe tinha problemas seríssimos. Ela só foi ficar mais tranquila, depois que eu já estava com mais de 40 anos. A família dela (Renilda) me trata muito bem. E é uma família evangélica, de igreja, fundamentalista. Mas eu vou ser, sempre, a amiga dela. Eu nunca vou ser a namorada dela. Agora, se o irmão dela aparecer com qualquer mulher, ela vai ser a minha cunhada. Tem até uma das irmãs dela que eu apresento como cunhada, ela é mais tranquila. Mas aí, a gente acaba tendo alguns cuidados, né? Há algum tempo, eu estaria lutando contra isso. Hoje, eu acho que eu também tenho que respeitar a dificuldade das outras pessoas. Até porque, nós conhecemos lésbicas que servem à mesa de suas famílias, bancam a mesa de suas famílias, mas não podem sentar na mesa de suas famílias. Não podem levar a namorada no Natal. Já o Rafael, tem 35 anos, e sempre me chamou de tia.
Renilda
É meu sobrinho.
Rosângela
A filha da sobrinha dela, que tem 20 e poucos anos, me chama de tia. E é porque ela sabe que tem essa relação.
E você, Renilda, nos seus outros relacionamentos, como foi apresentar pra família? Chegou a apresentar?
Renilda
Na verdade, nos meus relacionamentos, eu nunca apresento “essa aqui é minha namorada” Porque minha família é muito complicada. Eles são obreiros, pastores da igreja. Mas, eu levo, e elas aceitam. Mas eu não dou beijo. Eu penso assim: “na minha casa, elas têm que me respeitar, mas eu tô indo pra casa delas” Então, eu respeito. Se elas forem lá em casa, eu não fico junta, mas eu já chamo “amor”, alguma coisa assim.
Julia
É aquele não dito que todo mundo sabe, mas todo mundo prefere não falar, né?
Renilda
É isso, elas sabem. E eu já mudei muito. Era pior. Eu, também, deixava isso acontecer, pra não desagradar. Mas isso é do tempo da minha mãe. Aí, minha mãe morreu e eu continuei sem querer desagradar as minhas irmãs. Todos os meus relacionamentos foram assim. Foram 3, em que eu morei junto.
E você sente essa mudança, também, geracional, de quando você era mais nova, e hoje em dia?
Renilda
Muito. Quando eu era mais nova, eu me escondia. Eu pensava “Se eles descobrirem… o que vai ser de mim?” Eu tive o meu primeiro casamento e, quando acabou, eu tive que voltar pra casa da minha mãe. Aí que piorou tudo, mesmo. Eu fiquei muito presa, já adulta. Hoje, não. Eu morei um tempo fora do Brasil. Quando eu voltei, eu falei: “não dependo deles para nada.” E fui me soltando.
Julia
Se assumir sapatão era muito mais difícil do que hoje em dia.
Renilda
A geração de hoje, diz na maior: “Eu não gosto de menino.” Nossa, se a gente tivesse essa coragem…
Rosângela
Era tapa na cara. Eu apanhei muito.
Karol
É muito de geração mesmo.
Renilda
É. Por quê? Porque eles são mais novos.
Rosângela
A gente vem de uma criação judaico cristã, em que a mulher sonha em ter uma filha, fazer a festa de 15 anos da filha. E aí, a gente vai com o peito na cara. Tem que ser assim. Às vezes, é até importante dar uma afastada. Eu fiquei muito afastada da minha mãe, por conta das coisas que ela falava, que eram muito pesadas. E já, no final, teve um aniversário, acho que era dela, na casa da minha irmã, que mora aqui nessa mesma rua. Eu era casada com uma outra pessoa e minha mãe apresentou: “Essa daqui é minha nora.” A colega dela falou: “não sabia que você tinha filho.” E ela: “não se mete nisso, não. ” Como é que eu ia esperar ouvir isso de uma mulher que estava com 80 anos, né?
Karol
Uau.
Rosângela
Eu lembro, também, uma vez que um tio meu foi fazer uma graça com um menino que era gay. A esposa dele falou: “É preferível ter filho gay do que ter filho bandido”. Aí, a minha mãe falou: “Eu tenho uma filha que é homossexual. E ela vai pra tudo quanto é lugar.” Ela usou o que ser lésbica me proporcionou. Ela continuou: “Minha filha conhece o Brasil todo, ela já foi pra fora do país. E ela fala isso pra um monte de gente, pros caras que são preconceituosos, que nem você.” Ela usou tudo aquilo que ela criticava.
Renilda
Porque depois ela te aceitou, numa boa.
Karol
Até ficou orgulhosa, né?
Rosângela
Eu tive uma namorada, que o término não foi bom. E a minha mãe tinha uma filosofia que era: “Eu prefiro ter meus inimigos por perto”. (risos) Minha irmã tinha tido meu sobrinho lá em Rondônia, e veio para cá. Eu tava toda feliz, passando roupa do meu sobrinho, quando toca o interfone, eu olho pra minha mãe, e ela diz: “a casa é minha, eu recebo quem eu quiser.” No que a minha ex tava subindo, eu já tava descendo. Naquela semana, o Fantástico tinha me chamado pra uma entrevista, e eu disse que tinha uma restrição familiar. Minha mãe tinha me pedido: “Você pode aparecer onde você quiser, menos na Rede Globo e no Jornal O Dia.” Porque eram veículos de grande circulação. Aí, eu saí daqui mal para caramba, achei que tinha sido uma traição dela. Eu liguei pro cara do Fantástico e falei: “Olha, aquela entrevista que você queria, eu já articulei e eu vou poder te dar” E aí, quando apareceu… Naquela época, a gente ainda não mostrava nossa cara, foi em 97. Mas dava pra ver que era eu. Tinha aqueles disfarces, jaqueta e boné. Foi uma entrevista sobre estupro corretivo. A gente usava outro termo, na época. Quando terminou a entrevista, ela ligou, e eu não atendi. Ela deixou um recado: “atende, que eu sei que você está em casa.” (risos) Eu atendi, né? Ela falou pelos cotovelos. Aí, eu perguntei: “a visita da fulana foi boa?” E desliguei o telefone. (risos)
Como é a relação de vocês com a família, tendo religiões diferentes? E ajuda, ter a mesma religião, o candomblé, e compartilhar isso?
Renilda
Com a minha família, eles não querem nem saber. Por exemplo, se eu for tomar obrigação, eu não posso contar com ninguém. Foi muito difícil, quando eu me iniciei no candomblé. Eu já não morava com a minha mãe, eu tava casada. Mas, eu tinha um salão de cabeleireira que era embaixo da casa dela. E eu, toda de branco, toda de quelê (colar sagrado que a pessoa iniciada no candomblé utiliza), tinha que sentar no chão pra comer. Ela não deixava. Eles oravam. Foi muito difícil pra mim, porque a minha santa não me deixou tirar. Foram 3 meses. Foi um desafio. A minha mãe achava um absurdo. E ela foi de umbanda. Mas largou tudo, foi pra igreja universal. Casou na igreja. Ela entrou por causa do meu pai, e aí, levou todo mundo. Eu não fui não!
Rosângela
A minha história com religião de matriz africana, já é um pouco diferente. Porque, a geração da minha avó cultuava orixá. Com a questão do embranquecimento, a geração da minha mãe negou isso. Mas, como eu tinha alguns problemas, pequena, de ver coisas dentro de casa, eles me levavam para um centro. Minha irmã nasceu, ficou doente. O médico falou “olha, a criança não vai sobreviver. Quer que morra no hospital, ou quer que leve para casa?” E a minha mãe tinha uma colega que falou: “ela não vai morrer nem em um lugar nem no outro.” E levou num centro na Av. Marechal Rondon, Tenda Espírita Zurykan. Era umbanda. E minha mãe teve que ficar pagando promessa de Cosme e Damião. Eu comecei a frequentar e a me interessar, e isso incomodou ela. Mas como era umbanda, era aceito. Só que a minha mãe descobriu que eu era lésbica, antes de mim.
Karol
Acontece… (risos)
Rosângela
E eu comecei a me interessar pelo candomblé, por conta de várias exclusões. A igreja católica excluía, né? Quando ela descobriu que eu era lésbica, me levou pra um negócio de oração que o povo ficava orando, para eu deixar de ser.
Karol
Cura gay…
Rosângela
Disseram que a energia que eu tinha era tão ruim, que, ali, não ia dar jeito, tinha que ir para um lugar que batesse tambor. Aí, me levaram para umbanda. Olha o processo de cura… Só que eu tô falando de um centro espírita e de um centro de umbanda da década de 70. A umbanda também era extremamente lgbtfóbica. Fizeram todo um tratamento para que eu deixasse de ser lésbica. Diziam que eu tinha um Exu de frente, e era por isso que eu gostava de mulheres. Faziam umas sessões para eu receber Pombagira, que é uma entidade que me acompanha até hoje. Mas viram que não adiantava. Então, uma colega minha falou: “Vamos no candomblé.” O que me levou para o candomblé, foi a minha orientação sexual. Naquela época, o candomblé era muito rechaçado, que era coisa de viado e de quem mata bicho. Como se comêssemos um bife vivo, o frango vivo, o peixe nadando… Mas, dentro do candomblé, também, eu vi que existia uma diferença em relação às orientações sexuais. Os gays eram aceitos e as lésbicas ficavam em segundo plano. E a população trans, então… Isso foi mudando, com o ativismo. A casa em que eu me iniciei, é uma casa progressista. Eu estou na casa de Mãe Beata (em Nova Iguaçu), há 27 anos. Foi a primeira casa no Brasil a discutir visibilidade lésbica nos terreiros. Porque, até então, a gente só tinha uma Ialorixá que era lésbica pública. Ela não falava da sua lesbianidade, mas todo mundo sabia. As outras mães de santo que eram lésbicas, viviam na clandestinidade. Isso mudou muito. Eu tenho bastante orgulho de ter feito esse movimento para que a gente ficasse visível. Porque é a única religião em que a gente é liderança. Em algumas igrejas, têm pastora, mas a pastora não tem o mesmo status que o pastor. Na igreja messiânica, tem ministro e ministro, mas a gente sabe que o ministro tem mais poder do que a ministra.
Você quer contar um pouco para a gente da sua participação no Levante do Ferro’s bar? Como foi estar lá, presente?
Rosângela
Eu frequentava o Ferro’s, antes do levante, e, às vezes, eu ajudava a distribuir alguns jornais progressistas. No dia do Levante, era a semana que eu tava me recolhendo para me iniciar no candomblé. Então, foi como uma despedida em que eu sabia que ia ficar um ano sem poder frequentar. Eu não ajudei na construção do Levante, mas eu estive lá. E é uma cena que não dá para esquecer. Você ver uma mulher falar quem a gente era, o porquê daquilo estar acontecendo. A gente pegava vadiagem por estar no bar. O Ferro’s tinha intervenções militares. A polícia civil chegava e levava a gente presa. Então, foi um marco histórico para a nossa comunidade. Foi muito emocionante. 19 de agosto de 83, a data em que a gente comemora o Dia do Orgulho Lésbico. Primeiro, veio o Dia da Visibilidade Lésbica (dia 29 de agosto). Foi o dia em que a gente fez o Seminário Nacional de Lésbicas. Foi um seminário construído por mãos pretas, do coletivo de lésbicas do Rio de Janeiro, ‘Coisa de Mulher’, que hoje se chama ‘Casa das Pretas’. Nós tivemos 101 lésbicas que assinaram a lista de presença. Tinham mais mulheres. Só que muita gente tinha medo de assinar, por causa de trabalho. Até o começo dos anos 2000, pra tirar foto, a gente perguntava “quem pode tirar foto?” Algumas saíam, né… Nossa, como isso mudou.
Julia
Hoje é menos, mas ainda acontece, infelizmente.
Karol
Por causa da família, também.
Rosângela
Família é uma instituição muito cruel. Porque a gente sabe que, com toda a nossa sapatonice, em algum momento, a gente vai precisar dessa família. Quando eu voltei de Salvador, tive minha irmã me dando suporte. Mas eu dou sempre aqueles exemplos: a mulher pode estar casada com um cara que é mau caráter, vagabundo, violento, abusador. “Mas ele é o marido da minha filha. O filho daquele cara é meu neto.” A sapatão vai pagar a gasolina do carro do cunhado desempregado, e muitas de nós, até hoje, ainda pagam pra estar em casa e ter um quartinho, que não é o melhor quarto da casa. É a lésbica que paga o primeiro computador, que paga o ballet, a capoeira, que leva pra viajar, que leva no McDonald’s… E pra ela, é permitido, de vez em quando, levar a ‘amiga’. “A sua amiga vai dormir aqui? Vai dormir no quarto com você? Deixa a porta aberta.” Porque os nossos corpos não são os corpos que eles queriam que fossem. Quando o cara é gay, o imaginário popular é: “Meu filho que come. Meu filho é o macho.” Mas, no nosso caso, em que a gente não depende de um falo…Que mulheres são essas que para serem felizes não precisam de um homem? Como é que isso atinge a sociedade? Por exemplo, a Renilda mora em um condomínio na Lapa. O apartamento é dela. Essa sociedade diz: “Que porra é essa? Uma preta, saída da favela, que mora num espaço desses. Esse espaço tinha que ser nosso.” (pausa) A Renilda, para olhos estereotipados, não mostra ser lésbica. Para os homens, isso é uma afronta: “Poxa, uma nêga gostosa dessas.”
Julia
Esse mito, que eles criaram, de que a mulher virou sapatão…
Rosângela
Porque foi mal comida. Isso é muito complicado, né? No meu caso, tem gente que ainda fica em dúvida, porque é muito raro eu estar de calça comprida. Eu não gosto. Então fica assim: “Ela é meio desconjuntada.” Eu tenho uma placa de sapatão na testa, mas o pessoal ainda fica na dúvida. (risos) E também tem a questão do envelhecer lésbico. As pessoas dizem: “Ah, coitada, já tá idosa, né? Não tá com ninguém…” E, diferentemente das héteras, a gente se relaciona sexualmente até ao final da vida. É só ter uma boa conversa…
Karol
Verdade.
Rôsangela
As héteras ficam limitadas àquela rola que elas escolheram e juraram amor eterno. Porque rola pára de funcionar. E, por uma questão de educação, não procuram menino nem menina de programa. Tem homem que só sabe transar com pinto. E quando esse pinto deixa de funcionar, eles começam a ficar agressivos. Como se as mulheres fossem culpadas de um problema, que é biológico. É bem complicado. E ainda tem as pseudo héteras, né? Eu tenho amigas que são minhas héteras de confiança (risos), que são héteras que eu posso sair, passar a noite toda. Eu sei que não vão me assediar. Elas começam héteras e, depois de 3 engradados de cerveja, continuam héteras. Tem outras que, com meia lata de Brahma sem álcool, já começam “olha, eu não quero nada, assim, eu não gosto de mulher, mas com você…” Esse ‘com você’… E muitas das nossas não vêem que isso é assédio. Muitas das nossas gostam de se relacionar com mulheres héteras, porque parece que é um poder. “Eu consegui tirar ela do marido” Ainda tem essa mentalidade, né?
O que é importante para vocês em um relacionamento?
Rosângela.
Tem várias coisas, mas eu acho que a confiança.
Renilda
Respeito.
Rosângela
Liberdade da gente poder ser o que é. Confiar é deixar eu abrir sua carteira e saber que eu não vou pegar o seu cartão de crédito e estourar. A gente sabe que na nossa comunidade tem isso, infelizmente.
Renilda
Não pegar o telefone para desconfiar que se está falando com alguém.
Rosângela
É uma violência, né? A gente tem casos próximos em que essas violações foram muito ruins. Gente que teve o telefone clonado.
Karol
Caramba!
Renilda
Por amor…
Rosângela
Mas a gente tem assassinato por amor, né? Tem porrada por amor…
Renilda
Eu achei muito errado. Ela tava desconfiada e ela não tava errada do que ela tava desconfiada. Só que tinham outras formas.
O que, pra vocês, é a especificidade de um amor sapatão? O que é específico e especial de um amor entre 2 mulheres?
Rosângelas
Eu acho que a liberdade de conhecer os nossos corpos. Entender o que aquele corpo tá precisando, e não só sexualmente. Mas em relação à escuta, ao cuidado, ao carinho.
Renilda
Cuidados, principalmente.
Rosângela
Tem um caso bem emblemático. A gente tem um casal de amigas que, quando elas se conheceram, uma delas já era amputada.
Renilda
Amor igual àquele, eu nunca vi.
Rosângela
E aí, nesse período em que elas se conheceram, a que é amputada, se tornou renal crônica e diabética.
Renilda
E ainda tem mais.
Rosângela
Agora, há 3 ou 4 meses, ela foi internada, porque ela ia ter que amputar dois dedos.
Renilda
E ela amputou a perna.
Karol
Caramba.
Renilda
Ela tá desse tamanhozinho, e é um amor que eu falo assim “meu Deus”
Rosângela
Se fosse um casal hétero, a gente sabe que isso não iria acontecer. Até entre casais lésbicos… A gente fez um churrasco sapatônico, aqui, no terraço. Ela subiu, tendo uma perna. Agora, vai ter que ser um outro esquema. Mas ela já falou “Avisa quando vai ter outro churrasco pra gente ver como fazer.”
Renilda
E ela é feliz, tá? E a namorada não sai, não trai, cuida. Eu fico assim(impressionada)
Rosângela
A namorada falou que o médico veio dizer que ela não ia sobreviver, a namorada disse: “Faça qualquer coisa para ela ficar viva.” E ele disse que ia ter que amputar a outra perna.
Renilda
E ainda faz hemodiálise…
Rosângela
A gente anda nos grandes centros, e vê muito mais mulheres com homens com deficiência do que homens com mulheres com deficiência. Tem um outro caso, também. São duas ativistas de Curitiba. Uma delas teve câncer no rosto. Ela tá candidata à vereadora. Ela ficou com o rosto totalmente desfigurado. Elas continuaram juntas. Muitas pessoas já teriam saído. Agora, ela conseguiu fazer a reconstrução do rosto, mas usa uma prótese nasal. A gente sabe que muitos homens, se tem um filho autista, vão embora de casa; se tem um filho com síndrome de down, não pagam pensão. A culpa foi da mulher que teve o filho daquele jeito, né?
Como é, pra vocês, a convivência com o entorno, com o bairro? Na convivência diária?
Karol
Tanto aqui como na Lapa.
Renilda
Ah, na Lapa é tudo bem, né? (risos)
Rosângela
O teu andar tem quantos casais lésbicos, mesmo?
Renilda
6.
Karol
Uau.
Rosângela
Tem um casal que está há 30, 40 anos juntas, né?
Renilda
Uma tem 80, outra 72… Elas tem mais de 100 anos juntas!
Rosângela
Pra mim, é tranquilo, porque eu acho que o ativismo me ajudou. Eu sou uma lésbica pública. Tem gente que diz “Ah, fulana não é assumida.” Pra quem? Se tua família sabe, se teu trabalho sabe, você é assumida, só não é pública. É diferente. A minha cara volta e meia tá aparecendo em algum canto. Então, fica mais fácil.
Renilda
No meu caso, os meus amigos de infância são héteros. E dizem: “Você é tão bonita. Você podia ter um namorado…” Mas é só isso, mesmo. No nosso meio, não tem problema não.
Rosângela
E no teu prédio, na academia, nos lugares que você frequenta, todo mundo sabe.
E no trabalho?
Rosângela
O meu trabalho é diferenciado. Eu trabalho no Centro de Referência LGBT. Então, para trabalhar lá, tem que ser da comunidade. Há alguns anos atrás, eu pedi demissão. Quando eu voltei, tinham muitos héteros e muito voltado à igreja. Hoje, a gente tem duas héteras, que trabalham de madrugada. E a minha chefe, que tem 26 anos. Ela é branca, classe média, evangélica, hétera e, nossa, ela é maravilhosa. Quando eu trabalhei com ativista gay, eu passei por assédio. Com ela, nunca.