Karol Guimarães Rosa e
Monique Farias
[Karol] Sou Karol, tenho 27 anos, nasci em São Gonçalo, moro na Tijuca. Sou cristã e pisciana.
[Monique] Eu sou Monique. Eu nasci aqui no Rio, na zona Oeste, eu sou de em Inhoaíba, que é um sub bairro de Campo Grande. Já morei em vários lugares, mas, agora, eu moro na Rocinha. Eu sou candomblecista, capricorniana, tenho 31 anos, e é isso.
Julia
Karol esqueceu de falar uma coisa importante: ela é cineasta, tá? Então, a gente pode começar com a pergunta, a clássica pergunta, que introduz todos os assuntos que é:
Como vocês se conheceram?
Monique
Dá seu ponto de vista, que aí eu dou o meu.
Karol
Não lembro o ano (risos). Tava indo pra uma aula em um ateliê de production design e cinema. Eu tava morando em São Gonçalo, peguei ônibus em Niterói pra ir pra lá. E aí, eu tava com o equipamento de foto que ia devolver pra um amigo que fazia o curso comigo. Já dentro do ônibus, sentou uma menina do meu lado, falando que tinha me achado bonita. Ficou puxando papo e pegou o meu contato. E foi isso.
Monique
É o que ela lembra… (risos)
Karol
É o que eu lembro.
Monique
A minha versão é mais interessante, e mais longa também (risos). Eu tava terminando a faculdade, era 2016, eu acredito. Eu tinha matado aula porque eu queria comprar fantasia de Carnaval numa loja no centro de Niterói. Então, eu fui pra um lugar que eu não ia, num horário que eu não ia, desviei totalmente a minha rota por causa da fantasia de Carnaval. E aí, eu saí do estágio, que era num escritório no centro de Niterói, e fui andando até essa loja. Fiz o que eu tinha que fazer, comprei o que tinha que comprar, e tal. E fui pro ponto de ônibus que ficava em frente a essa loja, que é um ponto que eu nunca ia, porque tava totalmente fora da minha rotina. E aí, eu vi uma menina de costas, que tava com cabelo na régua (risos), blusa social, calça jeans, Nike no pé, mochila nas costas e um tripé de Câmera na mão. Enfim, porque eu tenho esse negócio, né? Eu tenho negócio com cabelo e com tênis. Se eu não gostar do sapato, eu falo assim: “não, essa a pessoa não é para mim” (risos). Se o cabelo também estiver maltratado, eu falo assim: “não!” (risos). Por isso que eu lembro muito desses detalhes. E aí, eu tava falando no whatsapp com minha amiga, a Ciça. Eu falei: “amiga, tem uma menina aqui no ponto, eu tô apaixonada” (risos). Eu fiz uma promessa comigo, falei assim: “o ônibus que essa garota entrar, eu vou entrar, vou sentar do lado e vou puxar assunto.” Porque eu não podia puxar assunto no ponto, não ia render. E aí, beleza. Ela pegou um ônibus pra Gávea, eu tava indo pra Ipanema, mas eu pensei: “tudo bem, eu vou pra Gávea, né?” Entrei no ônibus, não tinha lugar do lado dela, mas eu fiquei olhando e, logo depois, o cara que tava do lado dela, eu lembro até hoje que era um cara cabeludo (risos), ele soltou no Mocanguê e eu sentei do lado dela e falei: “Oi, tudo bem?” (risos). Eu não falei tipo: “Ah, estou te stalkeando e entrei num ônibus que não era meu” (risos). Começamos a conversar, eu falei: “Eu tava te olhando, vamos conversar, você é tão bonita e tal…” E aí, falamos de Carnaval, falamos de profissão, falamos de arte, trocamos contato e ficamos falando. E foi assim que a gente se conheceu.
Julia
Cara, você foi muito corajosa, né? Uma coisa super corajosa de fazer. Tipo, eu não me vejo fazendo isso. (risos).
Karol
Eu também não! (risos)
Monique
É, eu sou assim, eu tenho essa característica. Em geral, o meu carisma tá lá embaixo (risos). Então, assim, eu não tenho vontade de conhecer pessoas novas, eu não tenho saco pra conversar, eu não tenho saco pra nada disso. Mas, quando eu bato o olho na pessoa eu falo assim: “é essa pessoa!”
Julia
Capricorniana, né? (risos)
Monique
Eu só vou, cara, eu só vou.
Julia
Capricórnio tem uma coisa de foco, de focar e ir.
Monique
Né? É o tédio ou é o 100% foco, né? Ou nada me abala, ou eu lembro da roupa dela, mesmo 7 anos depois, sabe?
Camilla
Até o cara que tava do lado (risos).
Karol
Sobrou até pra ele (risos).
Monique
E aí, eu parei de falar com a Ciça, a minha amiga, porque eu tava falando com a Karol. E a Ciça ficava assim no meu WhatsApp: “E aí, como é que tá? Eu vou te mandar o gemidão do zap”(risos). Quando eu vi, tinha um monte de mensagem da Ciça. Eu falei: “ai, amiga, eu tava conversando com ela. ” Ela respondeu: “O que?! Você tá conversando com a menina?!” Eu falei: “Ué, eu falei que ia conversar… tô conversando.”
Julia
Vocês se conheceram nesse momento, mas vocês também ficaram um tempo sem se falar. É uma história que… né? E aí, depois?
Monique
É, a gente ficou. A gente teve contato durante um ano, um ano e pouco. Foi mais ou menos isso.
Karol
É, mas eu fazia parte de uma igreja muito conservadora e era muito conflituoso pra mim. Foi bem difícil nessa época, porque era negar quem você é por um dogma que as pessoas criaram por hipocrisia, né? E aí, eu lembro que eu falei com a minha mãe, da primeira vez que a gente se beijou, eu tava muito mal. E a minha mãe ficou meio: “Ah, acho que tudo bem, mas não pode se repetir”. Eu fiquei muito mal com isso e acabei me afastando. Ficamos muito tempo sem nos falar.
Monique
Muito tempo.
Karol
Uns 4 ou 5 anos?
Camilla
Caramba.
Monique
Acho que uns 5 anos.
Karol
Eu lembro de uma das poucas vezes que a gente se falou porque caiu uma barreira no Vidigal.
Monique
Que era onde eu morava…
Karol
Isso, eu mandei mensagem pra você, só que você já tava casada nessa época.
Monique
Sério?
Karol
Eu stalkeava ela (risos).
Julia
Tudo vindo à tona… (risos)
Karol
E aí, depois, acho que quando você terminou…
Monique
É, eu fiquei casada, acho que 4 anos. Eu morei junto, né? E terminei o relacionamento. E aí, do nada, vieram falar comigo (risos). Eu pensei: “nossa, que coincidência!” (risos)
Karol
Porque a Ciça tinha me falado.
Monique
A Ciça é a madrinha.
Karol
A Ciça tinha mandado mensagem: “Fala com ela, ela tá muito mal…” (risos)
Monique
Não tava nada, cara.
Karol
Eu falei: “Cara, mas nada a ver. ” E a Ciça: “Ah, mas vocês eram muito amigas. Ela tá muito mal.” Só que, aí, eu mandei mensagem do tipo: “Oi, sumida” (risos)
Camilla
Oi, separada (risos).
Julia
Oi, recém solteira (risos).
Monique
A Ciça é uma figura muito importante. Eu conheço ela desde o ensino médio. Então, foi ensino médio, vestibular, faculdade. A gente fez o TCC na mesma época, sobre o mesmo assunto. A gente era muito próxima. Até hoje, tem muita coisa que aproxima a gente.
E aí, quando eu e Karol começamos a namorar, eu pensei: “Cara, como que eu vou contar isso pra Ciça? Eu tenho medo dela ter um troço no coração de felicidade. “(risos) Então, vamos esperar uns meses, ver se rola mesmo. Depois de alguns meses, eu falei: “Ciça, eu e Karol estamos namorando.” E ela surtou e falou: “Vocês vão casar! Eu vou ser a madrinha”. Ela é a pessoa mais emocionada que eu conheço (risos).
Karol, você falou da angústia em contar pra sua mãe. A Monique foi a primeira mina com quem você se relacionou?
Karol
Mais ou menos, tiveram outras pessoas. Mas, de me relacionar do jeito que foi com a gente, mais intenso e maduro, sim, foi com a Monique.
Monique
Mesmo a gente sendo bem nova, né? A Karol foi a primeira pessoa por quem eu me apaixonei. Eu já tinha tido outros relacionamentos com homens e com mulheres e eu achava que eu já tinha me apaixonado. E, quando eu fiquei com a Karol, eu vi que não. Era uma coisa totalmente diferente. Com homens, era um relacionamento legal. Tava ali porque eu queria e gostava da pessoa. Mas, definitivamente não era paixão, sabe? Não era amor. E depois que a gente ficou cara, eu acho que nunca mais eu fiquei com homem assim.
Todas
Cura hétero (risos).
Monique
Normalmente, só me relaciono com mulher, porque com homem não tem envolvimento emocional, não flui a coisa da emoção, né?
Como foi esse processo de aceitação pra vocês? Ou, como foi essa luta interna, com vocês mesmas, e externa, na relação com a família, de se assumir bi ou sapatão?
Monique
Eu já tinha ficado com meninas antes, né? Mas eu nunca tinha me relacionado, mesmo. É uma coisa que eu ficava e, depois, acabou, acabou. Quando eu conheci a Karol, foi a minha primeira paixão, tipo, aos 20 anos. Então, foi um negócio, parecia que eu tinha 15 anos de novo. Foi muito doido, pensei que eu era adolescente de novo. Eu fiquei bem esquisita e tal, porque eu não sabia direito como lidar com aquilo e eu pensava: “Caraca, mas eu sempre namorei homem, como que agora eu estou sentindo algo totalmente diferente? ” Eu fiquei nessa dúvida e, por causa disso, eu não contei para minha família, não contei pra ninguém. E aí, eu lembro, um dia, que minha mãe fechou as portas, trancou e falou assim: “Você vai falar comigo, agora! Cadê as drogas? Já mexi na sua roupa, já tentei olhar seu celular, já fiz de tudo, não tô achando droga. Por que você tá esquisita?”
Eu falei: “Mãe, eu tô gostando de uma garota.”
E ela: “Tá, cadê as drogas? “
Eu falei: “Mãe, tô gostando de uma garota.”
E ela: “Você tá maluca por causa disso? “
Enfim, a minha mãe ficou frustrada porque ela esperava um puta problema e eu só tava gostando de uma garota.
Julia
Maravilhoso! (risos)
Monique
Ela falou: “Por favor, só não use drogas” (risos). Eu acho que ela não acreditou, sabe? Mas eu fui entendendo as coisas que estavam na minha cabeça e nossa relação ficou bem de boa, mais calma. Quem importava, pra mim, era minha mãe. Então, foi a melhor das reações.
Julia
Mas é isso, né? A gente é uma geração que não tinha visibilidade. Hoje em dia, pra quem tem 17 anos, tem sapatão em vários lugares. Mas a gente era de uma geração que nem via como possibilidade.
Monique
Você vai fazendo e vai quebrando a cara em algo tão pessoal e importante. Hoje, eu vejo que a nossa história teve tanto drama, tanta coisa que podia ser tão diferente, mas como que ia ser diferente se a gente não sabia nem que aquilo era possível, né? Eu morria de medo. Pensava: “Como é que eu vou contar isso pra minha mãe?” Eu sempre fui muito aberta com a minha mãe, a gente sempre foi muito amiga e, do nada. eu descobri, aqui, que eu, na verdade, gosto de mulheres. Como falar isso pra ela se nem eu estou entendendo? E aí, quando eu falei, minha mãe lidou com uma naturalidade…Eu achava que, por ela ser mãe, era proibido, sabe? Eu achava que a mãe tinha que reagir mal. E eu conhecia a minha mãe. Mas foram coisas que eu criei na minha cabeça.
Karol
Vou tentar dar uma resumida… Quando criança, eu comecei a ir à igreja, porque às vezes tinha festa lá e minha tia avó me levava. Minha avó também, às vezes, ia à igreja. E aí, eu fui crescendo, fui gostando e estudando bastante. Eu meio que levei minha mãe, também, pra igreja, que era super tradicional. Mas, até então, pra mim, aquilo era o certo, né? Mas, eu fui estudando, fiz seminário, comecei a questionar as coisas… umas coisas não tavam batendo, né? Eu tava estudando uma coisa e vendo outras acontecendo, o que já foi fazendo com que eu olhasse as coisas de uma forma diferente. E essa questão da sexualidade sempre foi um tabu. Tipo, nunca se falou muito, né? Só tipo: “É errado” e pronto. Então, eu conheci uma menina de família evangélica super tradicional. A gente teve um negócio que não concretizou porque a gente tinha medo de decepcionar a família e de ir pro inferno. Mas isso mexeu muito comigo. Depois, em 2019, eu fiquei muito mal, tive uma depressão muito barra pesada e muito por conta disso, também. Era um conflito muito grande, ainda mais porque eu sou muito da religião, né? Então, cada vez que eu estudava, mais eu entrava em conflito, porque isso não fazia sentido. E aí, quando eu comecei a dar uma leve melhorada, eu conheci minha ex namorada. Resolvi falar com minha mãe e eu escolhi um ótimo dia: o Natal. (risos)
Monique
Pisciana, adora um drama, ne? (risos)
Karol
Eu lembro desse dia, no quarto dela, minha mãe começou a chorar. Ela falou: “Filha, mas como assim? tá errado…” E eu tentei explicar pra ela o que era ser bissexual, sabe?
Ela respondeu: “Mas como assim? Você namora uma menina, mas você gosta de caras?”
Foi muito confuso, acho que até hoje ela não entendeu (risos). Foi meio barra pesada, mas eu fui muito preparada, com todo um respaldo bíblico e histórico, para falar: “Não, mãe. A forma que a gente foi ensinada não é correta.” A minha família sempre foi eu, ela e a minha avó. Minha mãe teve esse momento de negação e, mais ou menos, uma semana depois, ela simplesmente contou pra todo mundo da família, sem falar nada comigo. Pra minha surpresa, minha vó ficou super de boa e adorava a minha ex. Era tipo a neta dela, também. Até hoje, a minha vó gosta muito dela. E depois, veio Bolsonaro e tal. Foi o suficiente pra sair da igreja de vez, romper com isso e falar que não é o que eu sigo. E também acho que foi o suficiente pra mudar, também, um pouco, a cabeça da minha mãe. Ela foi vendo que, realmente, as coisas tavam indo pra lugares muitos extremos e não tavam fazendo sentido. Então ela foi mudando, melhorando. Mas, acho que o definitivo foi quando eu precisei me internar na pandemia, e a minha ex fez tudo pra mim, ela me ajudou em tudo. Até na questão da internação, mesmo. Minha mãe tava muito abalada, era pandemia, eu tava lá e ela não podia me ver. Acho que isso mudou uma chavinha da minha mãe. Ela realmente aceitou e foi mudando, conversando com amigos que também eram gays, e aí eles falavam: “Que ótimo que você é uma mãe que aceita.” E ela foi entrando nesse lugar.
Vocês super se conhecem?
Monique
Sim, sim. A gente convive, almoça junto.
Karol
Bebe cerveja zero.
Monique
Bebe cerveja zero junto. Ah, ela nunca tinha bebido e eu falei que agora só tomo zero álcool. Aí ela: “Compra pra mim?” (risos) Tu falou isso de Bolsonaro e isso mudou muito a minha mãe também. Ela era uma pessoa também do candomblé, que sempre se preocupou muito com a minha segurança em relação aos outros. Por exemplo, quando eu tava de preceito, ela tava sempre comigo. Ela não me deixava sair sozinha, porque ela tinha medo que eu sofresse racismo religioso. Quando foi a vez do Bolsonaro, ela falou assim: “Isso está em lugares em que eu não vou conseguir te proteger.” Então, eu lembro que ela ligou, pediu pra botar no auto falante, estávamos eu e minha ex. A gente já morava juntas e ela fez a gente prometer que a gente não ia fazer demonstração pública de afeto. Ela falava: “Fica em casa, vem aqui pra casa, mas não mostra na rua! Eu estou com medo do que as pessoas estão falando no ônibus, eu estou com medo das pessoas falando no metrô e eu não tenho como perder as minhas filhas.” Minha mãe tava com muito medo e num lugar de muito desespero. Pra ela, foi apavorante. A minha mãe teve que pedir pra eu voltar pro armário. Mas é mãe, né? Foi uma demonstração de amor e cuidado.
Julia
Ela tava preocupada com você, né?
Karol
É, a minha mãe falava muito isso também.
Monique
A minha mãe, antes disso, falava assim: “A gente já passou por um monte de coisa, vai pra um lugar onde você tenha paz, não liga pros outros, não.” Isso é uma coisa muito grande na minha cabeça, estar num lugar que a gente tenha paz, numa casa que seja nossa casa, mesmo. Estar com uma pessoa que seja nossa parceira, nossa amiga. Estar com pessoas que ajudem a resolver os problemas que a vida já apresenta pra gente.
Julia
Nossa, são duas histórias muito fortes. E eu sou super amiga da Karol e várias coisas eu nunca tinha escutado.
Monique
Às vezes, a gente fala que a gente não acredita que a gente se reencontrou.
Vocês duas têm essa relação muito forte com a religião, duas religiões bem diferentes, né? Como é o fato de ser LGBT na religião?
Monique
Na minha religião, não muda nada. Existem divindades no candomblé que não são nem femininas nem masculinas ou que assumem feminino e masculino. E o espaço de candomblé sempre agregou as pessoas à margem. Eu não sou descrente de que possa haver preconceito, porque uma religião é feita de pessoas que podem ser preconceituosas e ter milhares de defeitos. Mas eu não entendo como pode ser que isso aconteça. Na minha casa, as pessoas sabiam de mim. Então, quando eu falei que tava namorando com uma mulher, todo mundo disse: “Ah, que bom que você conseguiu.” E eu: “Nossa, mas eu sou tão discreta.” E minha mãe de santo disse: “Não é não, filha.” (risos) A minha família de sangue é bem evangélica. Eu sinto que eles não aceitam, mas eles respeitam muito. Eu já assumi uma maturidade em que eu não quero mais a aceitação de ninguém, porque ninguém tem nada a ver com a minha vida. Então, as pessoas têm que me respeitar, porque qualquer um tem que me respeitar. Mas se vai aceitar, se não vai aceitar, é uma questão deles, não é uma questão minha. Eu me aceito.
A sua mãe que foi para o candomblé, ela que rompeu com a família?
Monique
Exato. Minha mãe já foi criada na igreja, mas ela tinha uma tia avó que tinha uma casa de umbanda. Ainda assim, ela foi criada como se aquilo fosse algo ruim e ela rompeu com esse pensamento já adulta. Ela conheceu o candomblé por meio de um amigo e eu já nasci dentro do candomblé. Quando minha mãe fez o Santo, eu tinha 3 anos de idade. O candomblé já é uma coisa de, tipo assim, cuida da sua vida e faz o seu. Então, eu cuido da minha vida e faço o meu. A Karol e eu temos esse jeito em comum de ver a religião, isso de cuidar da sua vida e não ficar tentando mudar os outros. Se cada um cuidasse da sua vida, cada um fizesse o seu, tava tudo certo.
Karol
É isso, né? Eu era de uma igreja muito conservadora. Mas, da minha família, tirando a minha tia avó, que também estudava muito, eu era a que buscava mais. Então, acho que era questão de tempo. Eu ia sair daquele lugar. Mas, demorou muito. Eu ainda lembro de ter tentado várias vezes conversar com as pessoas, conversar com o “pastor”, com muitas aspas, né… com a pessoa que se diz pastor e com a esposa dele, porque tem aquela coisa de primeira dama na igreja; e com as pessoas que davam aula. Eu era líder de várias coisas de lá, então, tudo que eu podia, eu tentava. Só que, aí, chegou num lugar que foi o estopim, com o Bolsonaro, chegou num lugar em que realmente já não dava mais. Quando a pessoa chega lá na frente do púlpito, que é uma coisa sagrada para a gente, e fala assim: “Ah, vamos orar pelo candidato Bolsonaro, porque ele que vai mudar o país”, de verdade já não tinha mais nenhum diálogo, sabe? Pra mim, foi o ápice. Eu saí. Só que na época eu trabalhava no ISER, que é o Instituto de Religião. Um dos meus chefes era um pastor, que eu gostava muito, porque ele era absurdamente inteligente. Era muito bizarro, assim, porque é aquela pessoa que sabe muito, mas é super humilde, sabe? Eu admirava e admiro muito ele. E aí, ele falou da igreja dele, que surgiu com as pessoas que ficaram “desagrejadas”, como a gente chama as pessoas que ficaram sem igreja depois do Bolsonaro. Então, esse movimento que eu tive, outras pessoas também tiveram. E aí, ele tinha criado essa igreja com outras pessoas e, há muito tempo, ele tava orando e querendo fazer. Mas, esse momento de 2018 foi um divisor de águas. Ele falou pra eu ir nessa igreja, demorou muito pra me dar o endereço, inclusive (risos). Mas quando ele me deu, eu fui lá conhecer e eu me encontrei. Eu falei: “Cara, é isso, esse lugar é perfeito!” É um lugar que visa muito o estudo, isso é uma coisa muito forte. Lá é muito à base da bíblia, então, não tem o porquê de ser preconceituoso, de ser homofóbico. Pelo contrário. Eu cheguei lá, num momento que, por conta do fenômeno Bolsonaro, muitas pessoas não binárias, travestis, estavam sem casa e a gente tava no movimento de conseguir dar uma assistência, nem que fosse mínima, né? Conseguir um lugar pra essas pessoas ficarem, porque elas estavam sem casa e sem comida. Então, no momento que eu cheguei, eu falei que esse era o lugar que eu queria ficar. E aí foi ótimo, porque a minha mãe também foi lá, minha avó, minha tia, todo mundo amou e não tem como não gostar.
Monique
Eu já fui e não peguei fogo! (risos)
Karol
Aí, viu? Ela foi, e não pegou fogo! (risos)
Como é, na relação de vocês, por terem religiões tão diferentes? Isso afeta a relação, ou não tem nada a ver?
Karol
É bom porque a gente pode fazer piada. (risos)
Monique
É bom, é a única crente que pode me chamar de macumbeira (risos). Ela é uma pessoa disciplinada e a minha religião precisa de muita disciplina. A gente tem muitos preceitos, tem que abrir mão de algumas coisas, em algumas épocas. E ela me entende completamente. E a gente conversa muito sobre religião. Então, assim, eu entendo uma parte cristã que eu nunca tinha visto, né? E ela também consegue entender as curiosidades que ela tem sobre o candomblé.
Karol
Porque é legal isso. Eu acabei me envolvendo com o samba também, com essa música mais popular e tipo, é macumba pura, né? (risos) Então, pra mim, é muito interessante e enriquecedor. Culturalmente, é muito massa. Às vezes ela fala uma palavra que eu reconheço de alguma música e ela me explica.
Monique
Às vezes ela está tocando samba, e eu danço como a gente costuma dançar pra orixá. Ela brinca e fala: “Pára de fazer macumba.” Aí, eu falo: “Você que tá tocando macumba!” (risos)
Karol
Sim, isso é muito legal. Ela já foi na minha igreja. A gente, às vezes, faz uns encontros com a galera mais jovem e tem outras pessoas na igreja que são abertamente gays.
Monique
Isso é muito legal. Tamos num país muito plural, não dá pra pedir que tudo seja uma coisa. Se, dentro do próprio candomblé tem várias vertentes, dentro do cristianismo tem várias vertentes. Como a gente vai querer que tudo vire uma coisa só? Não tem como. Então, é muito melhor sentar, conversar e ver as coisas que a gente tem em comum.
Camilla
Vamos agora para a relação de vocês com o território.
Como é ser LGBT no entorno, com vizinhos e comunidade?
Monique
É bem de boa. Agora é diferente, não somos as únicas, né? Essa galera de 30 anos, a gente se reconhecia, mas ninguém se assumia tanto. Agora não. Meus vizinhos sabem, as pessoas vêem que eu tenho uma namorada. Isso é algo que tem menos em Campo Grande, que é um lugar muito dominado por igrejas. Eu tenho amigas que, desde sempre, a gente soube que a gente era diferente e depois a gente entendeu que a gente era bi ou sapatão. Mas, eu ainda vejo menos pessoas se assumindo em Inhoaíba. Quando alguém se assume, ainda é o cara gay que tem coragem de sair. Não é um lugar onde eu vejo lésbicas tão facilmente assim. Eu lembro de ter visto em festas ou na noite, assim, em baile e tal. Mas, agora, no dia a dia, tipo, um casal sapatão no mercado? Muito raro.
Karol
Bom, São Gonçalo também tem muitas igrejas. Apesar de ter nascido e sido criada lá, depois dos 11 anos, eu já comecei a estudar em Niterói. Então, acho que eu posso falar mais de Niterói, porque, quando eu já era pré adolescente/adolescente, era onde eu ficava mais. E, lá, acho que é uma galera mais hipócrita, que acha que tá no melhor lugar do mundo, porque tem o melhor IDH do Rio. Eu lembro que no último ano do ensino fundamental eu estudei num colégio em que minha melhor amiga, na época, começou a namorar essa menina que era mais velha. Foi um burburinho até que a menina foi expulsa do colégio e elas não tinham feito nada, só davam a mão no recreio e isso foi o suficiente. Muito bizarro, né? E eu sempre tive muito receio de demonstrar afeto. Acho que não quero chamar atenção. Sempre tive muito dessa coisa de não querer dar a mão, de não beijar na rua. Eu tinha muito medo mesmo, ainda mais em 2019 e 2020, eu achava que a gente ia apanhar, ainda mais por eu ser preta e estar abraçando uma mulher. Hoje, acho que eu tô um pouco melhor, mas, ainda assim, no metrô, no transporte público em geral, eu tenho medo. É uma coisa que eu tenho que tratar na terapia.
Monique
É algo importante de ser falado, porque você não tem vergonha de si mesma, você tem medo de apanhar!
Julia
Mas o seu trauma tem um fundamento, não é uma coisa infundada.
Monique
Eu gosto mais de demonstração pública, de afeto, mas eu entendo o medo da Karol.
Julia
Então vou juntar duas perguntas.
O que vocês consideram importante no relacionamento e como que é a discussão sobre monogamia ou não-monogamia?
Monique
A gente conversa muito, todo dia e sobre tudo. Então, acho que o diálogo tá em primeiro lugar. Poder conversar abertamente, sem ter medo da reação da outra.
Karol
É isso. Acho que o que é importante, em um relacionamento, é a conversa. E, como essa conversa é feita, também. Como ela chega. Eu acho que é importante tudo que você falou de não ter medo de conversar.
Monique
E a gente tá descobrindo a melhor maneira de se relacionar.
Karol
É, essa coisa do relacionamento aberto. Eu não sei se é não-monogamia. Eu acho que não chega a ser esse lugar. Acho que é um relacionamento aberto.
Monique
Eu acho que é monogâmico, mas é aberto. O compromisso é entre nós duas, mas tem coisas que acontecem no entorno.
O que é, pra vocês, a especificidade do amor sapatão?
Monique
A emoção. Sem dúvida. Eu acho que: se emocionar e ter a sensação de compreensão, também. Eu acho muito importante. Quando a gente conversa, eu sinto que, mesmo que ela não concorde, ela entende exatamente do que eu estou falando. É muito bom poder falar a mesma língua.
Karol
O cuidado é diferente. O olhar é diferente. Pras coisas da vida e pro interno na relação. E vocês não perguntaram, mas, também, pra mim faz muita diferença namorar uma pessoa preta. Depois que a gente começou a se relacionar, foi muito doido. Eu falei: “Caraca, é isso! Como é que eu pude me relacionar com outras pessoas que não são pretas?” Porque o cuidado é outro. É entender como o racismo pode acabar com o seu dia e não te julgar, sabe? É, isso é incrível. Eu recomendo. (risos)
Monique
Todo mundo.
Karol
Sem brincadeiras. Isso faz muita diferença. E meu cabelo tá bem mais bonito agora. (risos)
Monique
Relacionamento afrocentrado não é só sobre isso, gente! (risos) Sabemos que a crise é estética mas, vai além disso. (risos)
Karol
Posso pegar roupa de boas.
Monique
Nossa, isso é muito bom, pegar roupa. Eu acho que uma pessoa branca pode ter consciência, mas não vai ser igual. E sem dúvida, eu não preciso ficar explicando pra ela algumas coisas, porque são óbvias. Fora que ela não acha que eu tenho que ser paciente com racista ou com gente branca sem noção.
Karol
Sim, poder xingar racista junto, é muito bom.