Jaqueline Vasconcelos e
Joana Miranda
[Jaque] Eu sou Jaqueline Vasconcelos, tenho 41 anos, sou do signo de Virgem, sou atriz, professora de teatro. Nasci em Minas Gerais, Ipatinga, uma cidade muito pequena, perto da Bahia. Vim pra Juiz de Fora, uma cidade um pouco maior, lá em Minas, também. E, há 20 anos, eu moro no Rio. Só morei aqui na zona sul, por uma questão de trabalho. Minha religião é o budismo, mas eu faço os meus axés. Gosto muito de religião, quase fui freira.
Joana Miranda
Meu nome é Joana Miranda. Eu tenho 44 anos, sou professora de educação física e fisioterapeuta. Nascida e criada, no Rio, no Flamengo. Meu signo é câncer, mas eu não sou nem muito mística, nem muito religiosa. Eu sou tímida, então vou acabar por aqui. (risos)
Como vocês se conheceram?
Joana
Ela dava aula numa oficina de percussão, ela fazia parte do bloco ‘Thriller elétrico’. Eu fui aluna dela. Eu tinha uma namorada, na época. Só que a gente sempre ia pra praça São Salvador, depois das aulas e tal. Aí, a gente ficava lá, batendo papo, conversando. Eu comecei a perceber que tava gostando muito de conversar com ela, gostando de ficar junto… E meu namoro já tava ruim há anos. Eu terminei, e logo que eu terminei, a gente foi numa festa junina, com o pessoal do bloco… Aí, a gente ficou e não separou mais.
Jaque
Ela tinha uma namorada. E ela que chegou mais, né, amor? Porque eu tava assim “não, ela tem namorada”. Nem passava pela minha cabeça.
Joana
É, mas não foi um ‘chegar’. Foi uma coisa que aconteceu.
Jaque
Eu falei com uma amiga: “Ai, Elisa, ela fica encostando o joelho em mim. Eu arrasto o joelho, e ela encosta o joelho. Acho que ela tá afim”. E ela falava “Jaque, ela tem namorada, pelo amor de Deus!” E ela com a namorada dela, era tipo assim, ela tinha o carro, a namorada tinha o mesmo carro, cada um com um carro com uma cor, era tipo esse nível, aquele casal que usa a mesma roupa, sabe? Então era assim “não, de jeito nenhum. Imagina, ela tem namorada.” Aí, a gente conversou.
Joana
Foi meu aniversário,
Jaque
Ela tomou uma tequila…
Joana
Eu te convidei pra ir.
Jaque
Eu não fui.
Joana
Você ia numa apresentação. Mas teve um momento, que foi muito importante. A gente ia se despedir, na praça, eu tava indo pro aniversário e você indo pra lá. A gente se abraçou, você me deu parabéns, ficamos abraçada e saímos. Aí, de repente, a gente se olhou, e se abraçou de novo, não foi?
Jaque
Aí, a gente foi conversar. Eu falei “Ó, cê tem namorada? Então resolva. Vou te esperar, espero você resolver essa situação…Espero 6 meses.” Aí, em uma semana, ela terminou. (risos) A gente se encontrou, acho que no mesmo dia. Ela chorou muito.
Joana
Aí, ela falou: “Calma. Antes a gente vai conversar.”
Jaque
É… antes do que, né? (risos) Ela chorou muito por conta do namoro. Teve esse processo, pra mim, também. Você entra numa relação que a pessoa tá falando “eu quero ficar com você” e tá chorando porque terminou. Mas, aí, eu vim pra cá nesse dia. Pra ficar com ela, pra acolher ela, mesmo. E não saí mais.
Joana
É, literalmente.
Jaque
Acho que eu fui dormir, uma vez, com a minha mãe, que mora em Minas.
Julia
Sapatão raiz… (risos)
Jaque
Com um mês, a gente marcou o casamento. Com três, a gente casou e esse ano a gente faz onze anos. A gente só não se casou antes, porque a família tinha que dar uma digerida.
Era seu primeiro relacionamento sapatão?
Jaque
Terceiro. Assim, segundo. Nem sei, acho que primeiro. É que é essa coisa: “Ah, eu gosto de homem também…” Quando você vê, você tá ali enrolando. Aí vem a outra, e você tá ali, tentando lidar. É namoro, não é? E tinha a distância…
Joana
Você já tinha pegado várias mulheres!
Jaque
Ela sempre namorou muito, mas eu não namorava. Eu peguei uma, que foi a primeira. A segunda, e só. Eu venho de uma família muito religiosa, muito preconceituosa, do interior de Minas. Eu podia ser tudo na minha vida, menos artista. Fui chamada de drogada pela minha família. Vagabunda, que eu não trabalho… E aí, pra completar, sapatão. Então (para eles), é melhor ser escrota do que ser lésbica… E eu estudei pra ser freira mesmo. Foi assim que eu cheguei ao teatro. Eu fazia teatro na igreja e foi, pra mim, um processo. Eu fui estuprada dos 9 aos 14 anos. Isso é uma coisa que matou e fez outra pessoa acontecer. É um sofrimento pra mim, e vai ser pra sempre. Eu passei muito tempo e, ainda passo, questionando o que sou eu e o que é o reflexo do que eu vivi. Então, por exemplo, para o tratamento do Otto (filho delas), eu tive que fazer vários exames. Eu descobri e tirei um tumor, aqui, no peito, eu tirei muitos miomas. Eu tinha endometriose, eu sentia dor. Eu não sabia o que era doença, o que era trauma… Eu sei que eu não gostava de ficar com homens. E aí, eu demorei muito pra entender que isso era um movimento meu e não uma resposta minha, porque o meu entorno todo dizia que isso era uma resposta minha. Até que eu fiquei a primeira vez com uma mulher e, aí, fez todo o sentido. Mas não foi uma coisa fácil, não foi uma coisa calculada. Eu nunca tive preconceito. Eu sempre andei com amigos gays, e tive a fama. Todo mundo achava que eu fosse lésbica. Eu sofri preconceito antes de me entender, até. E aí, quando ela chegou, eu já tava resolvida na minha vida. Mas tudo meu foi tarde. Eu perdi a virgindade com 20 anos. Tive meu primeiro relacionamento com uma mulher aos 27. E foi, muito, por essa mulher ter vindo até mim. E com 30, 31, eu casei com a Joana. Eu não namorei, não tive relacionamentos. Aí, com a minha mãe e minha irmã, que são quem eu convivo da minha família, a gente já tá super resolvida.
Joana, e como foi, pra sua família, aceitar a sua sexualidade e depois o seu relacionamento?
Joana
Eu me assumi para minha família já com a minha primeira namorada, com 19 anos. Meu pai foi tranquilo. Meus pais são separados. E a minha mãe foi uó… Queria me levar pra morar com ela e o marido, na Barra (da Tijuca). Queria me afastar de todo mundo. Fiquei vários anos levando, né, ouvindo várias coisas da minha mãe. Minha mãe falava horrores pra mim. Ela chegava a ofender, até o dia em que eu falei pra ela: “Olha, a partir de hoje, quando você me falar uma coisa que eu não gostar de ouvir, eu vou responder coisas que você não gosta de ouvir também.” E aí, ela parou. Mas nunca aceitou bem. Eu tive vários relacionamentos. Morei com uma menina, bastante tempo. Acho que uns 5 anos. Aí, depois, tive essa namorada, também. Foram mais uns 4 anos. Tive várias namoradas. Eu namorei a vida inteira. Meu irmão me chama de passarinho de gaiola. (risos) Quando eu falei que ia casar, com um mês, a minha mãe…Foi tenso.
Jaque
A gente teve a nossa cunhada, pra intermediar a relação. A gente casou no civil.
Joana
A Marta foi assinar como testemunha.
Jaque
Até quando você marca o casamento, você tem que ter testemunha, porque você tá assinando um contrato. Casamento é um contrato.
Joana
Quando você marca, você tem uma primeira sessão que já tem que ter 2 testemunhas. Aí, a nossa cunhada foi a testemunha. A gente falou: “fica quieta”. Aí eu contei (para a família), e minha mãe foi no casamento civil. Mas ela já foi, assim, emputecida…
Jaque
A gente foi o primeiro casamento budista entre mulheres do estado e o segundo do país. Eu pedi nota no jornal, eu pedi pra divulgar bastante, porque a gente casou em 2013, logo que a lei entrou em vigor. Então, pra mim, era importante botar isso, porque é aquela história: direito que não é exercido é perdido. Quando você se casa, você pega a sua certidão de nascimento e joga fora, porque você nunca mais vai precisar dela. Ela é substituída pela do casamento. Então apaga aquela esperança de que “Ai, é uma fase da minha filha, mas ela vai conhecer um homem…” Porque tá lá: ela se casou com uma mulher. Ela foi, exerceu a sapatonice, sabe? Isso é um processo. A minha mãe, por exemplo, que super me aceita, mas no começo, a gente andando na rua, ela me falou isso, anos depois: “Filha, você estava só andando com a Joana, uma pessoa atrás passou e falou: ‘Ah, isso aí é tudo capeta, vai pro inferno, essas duas aí’. Minha mãe é muito religiosa, ela ouviu e ficou arrasada. Então, tem uma preocupação, entendeu, do que que vai acontecer. Em 2013, vamos lembrar, a gente foi pra rua, a extrema direita e à direita tomaram o processo. Começaram a colocar fora a esquerda e as pautas progressistas. Vem Bolsonaro… A gente casou com o Bolsonaro entrando, foi um pouco depois. A gente na rua, com gente passando e gritando: “isso vai acabar, vai morrer!” Então não é uma coisa de esconder, mas de se proteger. A minha mãe tinha medo da gente apanhar. Todo resto da família dizia que eu tava perdida. Que eu saí de Minas e fui pro Rio para ser da vida. Mas a minha mãe e a minha irmã são o meu fechamento. Elas nunca tiveram preconceito. Minha mãe teve zelo. A gente casou as duas de branco, com vestido de noiva. O pai dela falou: “Ah, então é para casar. Então vamos fazer um festão, vai ser pra família inteira.”
Joana
A minha madrasta também teve um papel importante.
Jaque
Os sobrinhos delas, gêmeos, entraram com as alianças.
Joana
Eu lembro que na época que a gente tava organizando o casamento, ela (madrasta) queria dar umas ideias, tipo: “Vamos botar os garçons sem camisa.”(risos) “Se não, vai ficar uma coisa muito careta”. E eu pensei que, no nosso caso, quanto mais careta, mais revolucionário.
Jaque
Família tradicional lésbica. Casamos cedo, somos monogâmicas… Eu chamei o Jean Wyllys. Chamei pessoas que representavam o movimento (LGBTQIAPN+). A gente fez um casamento bem tradicional. Budista não é tradicional, mas assim… E a gente tocou com o nosso bloco na festa. Ai, que vontade de chorar… Pra um casal hétero, casar é uma coisa passada. Não é revolucionário. Mas, pra gente, é. Então é uma inversão de importância. Eu estudei direito, também. E existe, literalmente, essa frase: “Direito que não é exercido é direito perdido”. Então, a gente tem que exercer, eu sou militante do casamento. Quer casar, casa. Não gostou? Separa. Não é mais como antigamente. Vai, ali, no cartório, agora tá facilitado. Se não tem filho, não tem patrimônio, é na hora. Não precisa mais do outro aceitar. Eu sou essa pessoa que pensa assim, tudo bem quem pensa diferente. Eu penso: não deixe de fazer só porque alguém tá dizendo que você não precisa assinar um papel. Porque falam assim: “Ah, pra que assinar um papel? É uma bobagem.” Então, assina. Se é igual, morar e não assinar a morar e assinar, então assina. Não é a mesma coisa, entendeu? Porque quando você assina, você se mostra pra sociedade, você se coloca pra família do outro, você deixa o outro julgar, é um lugar de se colocar para ser julgado. Como eu já brinquei aqui: Se quiserem botar minha foto no lambe-lambe, podem botar, eu sei que vão desenhar um piru, e eu ainda faço assim, ó (zomba)! Vai acontecer, tudo bem, não tem problema. O importante é fazer a crítica, é fazer pensar. Porque não pensar, pensar pela cabeça do outro é o que eu acho ruim.
Joana
Ela falava muito isso: “Pô, sei lá, se uma das duas sofre um acidente, você tá no hospital, podem não deixar você ficar junto da pessoa…”
Jaque
Eu vou ter que me humilhar!?
Joana
Vários momentos a gente fala assim, quando tá no hospital: “Quem é?” “É minha esposa”. Aí deixam entrar.
Jaque
E acontece, é real, entendeu? E tem um monte de coisa que acontece. Então, por exemplo, você vai fazer alguma coisa, o cara vem e me exige comprovar que eu sou casada com ela. Eu tenho que pegar a certidão e mostrar. Mas ele não pede isso pro outro… É o dever dele pedir. Pra um homem, ele não pede, mas pra mim, ele insiste. Com filho, pra quem é mãe, então… Último dia das mães, que foi o nosso primeiro com o Otto, a gente sentou num restaurante, do Jockey e, aí, a mãe, ganhava sobremesa. Por que a mãe? Por que não pode ser quem cuida da criança? Eu sou da educação. Já passou, dia das mães, dia dos pais. É dia da família, e a família é quem cuida. Aí, o cara chegou pra gente e perguntou: “quem é a mãe?” Ela já esperando pra cair na porrada: “Tá perguntando, por quê?!”… Eu pensei “Hoje eu não vou, descansa, militância”. Eu falei: “Olha, a gente cuida, né? É o meu sangue, mas ela que gerou. Quem é a mãe?” Aí ele: silêncio. “Eu acho que são duas sobremesas, né?” E eu: “É, obrigada, duas sobremesas.” A vontade dele é perguntar: “Quem gerou? É o sangue de quem? Alguém adotou aí?”. Ah, cara, paga a porra do pudim! São essas coisas… Você nunca sai ileso.
Karol
Ô sushi(cachorro)…
Jaque
Ele veio me defender! O Otto fala: “o sushi é moimão”(meu irmão) (risos)
O que é importante pra vocês num relacionamento? E como é que foi essa trajetória de 13 anos? Deve ter tido várias fases, é toda uma vida…
Jaque
Casamento é você querer estar casado. Você não precisa casar pra tá junto. Eu acho que isso é importante, a gente querer estar casada, porque a gente pode namorar…. Mas a gente quer estar casada.
Joana
É diário. Todo dia você tem que decidir, se você quer continuar.
Jaque
A gente passou pelo processo do Otto, que fez com que a gente se isolasse, fez o casamento ficar muito difícil. Até por uma questão biológica, hormonal. E quando você fala assim: “Agora passou o processo hormonal, agora eu vou relaxar.” Não, agora você pariu, agora vai nascer, agora vai ser. A gente passou cinco anos tentando. É muito desgastante. Todo mundo pergunta “Cadê você?” E você não vai tá no lugar, porque às 6 da manhã você tá fazendo isso, 11 da noite você tá fazendo isso. Aí, você perde o dinheiro, não viaja, não se diverte. A gente falou: “Essa é a última, se não for agora, não vai.” Ela queria adotar. Eu já estava em dúvida se eu queria… Eu adotaria, né? Mas eu queria passar pelo processo da gestação, ver a gestação acontecer. E o processo da adoção é muito longo… A gente foi questionada, sobre essa questão racial, porque a gente ‘comprou’ num banco de esperma, e aí, você escolhe as características. Muita gente escolhe dentro dessa estrutura racista em que a gente vive. Nós somos diferentes. Eu tenho traços indígenas. Ela é branca, loira, de olhos azuis. Eu busquei um perfil que se assemelhasse mais a mim. No primeiro, né?
Joana
Porque, na primeira vez, era o meu óvulo.
Jaque
Na segunda vez, foi o contrário, era o meu óvulo. Aí, a gente buscou um doador parecido com ela. Porque você precisa da identificação, isso é importante. Eu vou escolher dentro desse lugar de característica, porque já é uma criança que vai nascer com muita coisa pra ter que lidar. Aí eu tenho uma amiga negra que me questionou “Por que você não pegou um doador negro”? Eu falei “Porque não é sobre isso, não é sobre eu juntar as temáticas raciais todas, e querer lidar com tudo. Eu já tô lidando com muito.”
Joana
Eu pensava que ele já ia ter muita questão pra lidar. Você pensa em tudo. A quantidade de histórico familiar de doença que você vê. Você fica estudando 50.000 coisas.
Jaque
Você entra numa onda. Aí tem teste genético… Desde que a gente casou, a gente quer mostrar, a gente quer militar em cima. Eu, né, principalmente, ela vem comigo.
Joana
É um processo muito paranoico. É todo mundo falando um monte de coisa.
Jaque
E todo mundo exige de você.
Joana
Essa coisa de doença, pô, você não tem que olhar nada de doença. Vai ficar maluca. Se você fosse transar com alguém na rua, não ia saber nada.
Jaque
Todo mundo tem alguma coisa pra falar pra você. Muita gente dizendo que a gente não abria a relação. Consideravam a gente, heteronormativas. É muita gente julgando. Aí, quando a gente teve filho, então, fomos alijadas das amigas.
Joana
Quando você vira mãe, você começa a buscar informações de mães, que em grande maioria são heteros, né? E todas reclamam que, quando nascem filhos, os amigos somem. E no nosso caso, então, sumiram todas.
Jaque
A gente faz parte dos grupos de dupla maternidade nacionais. Eu sou uma das organizadoras gestoras de um grupo. A gente parou, por exemplo, de sair com umas amigas nossas, porque elas tavam num momento de um rolês muito abertos. E elas pararam de fazer o rolê com a gente porque a gente não tá aberta. A gente tava em outro processo e quando íamos embora, elas criticavam. E aí, quando eu via, a gente tava discutindo em casa umas coisas que não tinham sentido. A gente deu um tempo também de fazer alguns movimentos, porque a gente tava no momento de segurar muito a família. Ela tava grávida. Antes também. É muito investimento.
Joana
Na nossa história, a reação da minha família de não aceitar bem, é uma coisa que incomodou. Incomoda até hoje. Minha mãe já tá super de boa, mas ficou essa cicatriz. Tem coisas que são difíceis.
Jaque
E o que pega para gente, é que nós somos de classes sociais opostas. Eu venho de uma classe média. Quando eu era nova, passei por tudo que eu passei e fui pra miséria. Mas estudei nas melhores escolas porque durante o meu período de estudo eu ainda tinha a estrutura da minha mãe, ela sempre me disse “Educação não vai te faltar”. Estudei em escolas católicas, eu tive uma boa educação dentro do lugar religioso. E sempre muito lascada. Eu já passei fome. Eu já vivi de comer arroz puro. Comprando fibra, diluir com água e comer só aquilo, porque era fibra, um pacote. Aquilo vai te sustentar. É horrível. Parecia casca de árvore. Ela era a menina que foi pra Disney, que fez intercâmbio fora…. Que tem uma família com a cor, com o lugar…
Julia
Zona Sul, Rio de Janeiro.
Jaque
Com poder e com dinheiro. E isso é um conflito, uma questão. Ela é a filha que não quis ficar rica. Ela quis fazer educação física, ganhar por hora, ser sapatão, e não ser a menina do balé. O nome dela vem de uma bailarina… Isso que pega muito, com a família e entre a gente. A gente evolui muito uma com a outra, porque a gente tem que se aceitar. Pra ela tem, coisas que eu faço que são difíceis, e tem coisas que eu faço que, pra, ela são difíceis.
Karol
Se quiser falar mais…
Jaque
Ah, eu falo alto, “Vai tomar no cu. Sou pobre mesmo! Falo alto mesmo!”. E ela é “Calma, você tá sendo agressiva…” Tudo é diferente. Mas eu tive boa educação e eu acho que isso nos conecta. Porque os opostos se atraem, mas é o igual que fica junto, né? Tem que encaixar. É a educação, que nos conecta, até num lugar de comunicação. Ela vai falar uma expressão em inglês, e eu vou entender porque eu tive uma boa educação. Mas, eu passei por uma situação de muita violência. E reprovei na escola, em matemática, meio ponto. Eu mudei de escola, mudei de cidade, passei por muita coisa pra me livrar desse momento. Isso cortou de mim questões importantes.
Joana
Em termos de conexão mesmo, vamos voltar lá pro nosso começo: por que a gente se conectou tanto? Acho que a gente tinha valores muito importantes em comum. E não tô falando de valores morais, tô falando do que é importante. E claro que dinheiro é importante. Quando a gente não tem dinheiro é que a gente vê. Mas o dinheiro é muito importante até um limite. A partir de um limite, não tem mais importância, entendeu? É paranoia. Eu lembro, logo que a gente começou a ficar, eu falei: “Olha, eu acho que não vai dar certo. Eu sou muito quieta, introvertida, ciumenta… você é do teatro, vai querer fluir.” e ela falou: “Não, você tá com a ideia errada. Eu sou monogâmica, eu gosto de compromisso, sou muito leal, muito fiel. “
Jaque
Ela é um pouco mais velha que eu, um pouquinho. Mas ela é do Rio de Janeiro. Eu adoro ouvir as histórias de quando ela era nova, porque eu não vivi isso. E aí eu falava: “você não é dessas doidas né, que depois eu tô jogada… eu tô saindo da minha casa, que é muito simples, mas é muito importante pra mim. Você não vai me chutar daqui há um ano, não, porque cara, eu vou te foder, tá doida?” (risos) No final, eu tô fodida, chorando por amor com uma mulher super experiente, sapatão… Eu acho que a gente tem valores importantes em comum: de coletivo, de honestidade, de fidelidade. É uma das crises, da briga dela, às vezes, com a família dela. Essas coisas de distribuição de renda, que é uma coisa que para mim pega o tempo todo. Eu sou servidora. Tem coisas que pegam muito. Eu escolhi arte pra seguir, porque eu pensava, eu não tenho condições, nem estudo, pra passar pra uma faculdade de medicina. Eu não achava que eu fosse capaz. Eu fiz vestibular, passei. Viva o meu THE (teste de habilidade específica). É isso que eu falo: “Vai estudar, porque a sorte você não pode contar.” Eu não passei só porque eu tive sorte, mas porque eu tive uma boa base de educação. Porque eu lia, eu escrevia. Eu tinha feito Cal(Casa de Artes de Laranjeiras), também, né?
Jaque, você sempre foi muito militante e agora você é pré-candidata, né?
Jaque
E menos militante do que eu era antes, por causa da família dela.
Como que você virar pré-candidata tá afetando a família? Ou se isso já fazia parte, porque você já era militante.
Jaque
Quando a gente ficou junto, eu fui pra Bangu soltar a galera, lá, a Sininho… Ela já ficou desesperada.
Joana
Claro que eu fiquei com ódio. Você ficou até às 5:00 da manhã num lugar super perigoso! Parou de me dar notícia. Eu tava já tomando banho pra me arrumar pra ir trabalhar, que eu trabalhava cedíssimo, desesperada, sem saber se ela tava viva ou morta. Aí ela ainda parou na Lapa pra tomar um chopp…
Jaque
Amor, eu tava pilhada. Porque a justiça não soltou até o prazo, até 20h. A justiça soltou às 23h, pra f*** mesmo com a galera.
Joana
É o seguinte.
Jaque
Ela tem medo de eu morrer na rua…
Joana
Sobre a pré-candidatura, ela veio me perguntar o que eu achava. Porque ela tava super estável, diretora de escola municipal. Eu disse “Acho que tem tudo a ver com você. Você já é um ser político muito antes de estar na política.” Desde que eu conheço ela, ela é militante de tudo. Ela já foi pra Brasília, já tomou tiro lá no Pará, em Altamira. Graças a Deus, nenhum tiro pegou. Eu sou mais quieta, né. Alguns eventos, eu vou. Mas ela vai a 50.000 mais coisas do que eu. E aí, logo no começo, a gente na (praça) São Salvador, a polícia, a guarda municipal mandar parar de tocar instrumento, ela vai lá pro meio do coreto falar. Eu só falava “Por favor, não seja presa…”
Jaque
Pô, o policial foi esculachar uma menina com churrasquinho… Mas, depois, eu passei um mês comendo churrasquinho de graça. (risos)
Joana
Eu não posso dizer que é uma coisa nova na nossa vida. Mas, por causa da pré candidatura, ela tá muito fora de casa, por exemplo.
Jaque
E a gente tem um filho. Ela tá sobrecarregada.
Joana
Nosso filho acabou de nascer. Tem um ano e pouquinho… Dá trabalho pra caramba. Então, fica muita coisa em cima de mim. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que ela precisa fazer isso. Acho que é uma oportunidade. É um motivo de orgulho pra família, também.
Jaque
Eu não escolhi entrar. Eu fui chamada pra entrar. Porque eu já tomei muita ouvidoria, muito processo no MP, muita denúncia, porque eu fiz uma política anti racista muito importante, numa escola muito elitista. E (uma política) inclusiva, que é o que me pega. Eu comprei muita briga com muita gente. Eu batalhei muito pelo meio ambiente, botei meu cargo à disposição várias vezes.
Joana
Ela fez tudo isso dentro de uma área militar…
Jaque
Eu só aceitei, depois de testar muito e exigir muita coisa. Pra não ser cota feminina, porque eu sei que a gente é cota. E mulher lésbica, né? Professora, cota. Ao mesmo tempo, eu acabei mudando. Não fiquei nesse partido que eu ia entrar e fui pra um partido mais progressista.
Porque eu ia comprar briga com algumas pessoas daquele outro lugar, que é o que eu tô fazendo agora. Só que nessa migração, eu tava dentro de uma estrutura, eu perdi tudo. Eu fui pra um partido que não tá no governo, não tem influência. Eu fui pra um partido progressista, sem militância, sem eleitorado. Então eu voltei a ser cota, eu entrei no zero. Tá mais difícil para mim, porque, antes, eu tinha uma máquina. Eu abri mão, e hoje, eu não tenho máquina, muitas vezes, até, eu estou criticando a máquina. Eu preciso tentar entrar, porque eu sou servidora. Eu não sou uma pessoa que tem um emprego. Então, arrumar uma briga ali, falar “eu discordo” me trouxe pra um lugar da pré-candidata zerada, que não fica em casa, que tá no corre. Eu faço Uber/99 moto com a minha moto pra fazer um troco, pra girar o meu negócio. Porque se alguém me oferece muito dinheiro, me põe um cabresto. Eu tô conhecendo a política. A pessoa bota uma coleira, e você vai seguir tudo que aquela pessoa fizer. A gente tem uma estrutura, uma cidade miliciada, né? A campanha impacta muito ela, porque antes eu conseguia buscar o Otto na escola, 4 da tarde. Hoje eu não consigo. Eu pedi pra ficar fora da prefeitura porque: se eu sou da educação, e, como candidata, eu vou fazer uma crítica à educação, eu não posso estar lá. Eu não posso ficar submetida a um secretário. Tudo é um estresse. E aí eu chego em casa 10, 11 e vou dormir 1h porque eu tô ligada. Eu não tô tendo gente pra fazer minha rede social, suspendi o meu marketing, agora, esse mês de julho. Então eu tô tendo que editar vídeo… Aí deixo de ver o Otto. Às vezes, eu chego, e ele vira assim pra mim. Então tudo isso, hoje vocês estarem aqui, e ele não, foi um processo. Mas isso aqui é importante, vai dar orgulho pra ele. É o que vai dar a consciência, pra que ele não seja um boy escroto, pra ele ser engajado. No aniversário dele, ele ganhou um monte de carrinho, de boneco, de azul. Todo no estereótipo de meninos. Eu falei “Porra, nenhuma amiga, amigo meu deu uma boneca.” Aí a gente comprou uma garrafinha rosa, as bonequinhas. Ele ama boneca. Ele dá banho na neném…
Karol
Ai, que fofo!
Jaque
É uma estrutura muito machista. Com 20 dias, eu tive que voltar pro trabalho. E o começo com o Otto foi muito difícil, foi traumatizante. Ele fez uma cirurgia na língua, passou por muito problema para se hidratar. Aí o trabalho me estressou, eu vivi pouco ele, né, amor? Eu comecei a tentar amamentar e o meu leite secou… E aí, quando eu saio do trabalho, de um trabalho que me exauria, em que eu praticamente morava ali… Eu falava que era minha casa, mesmo…E penso: “Quero voltar pra sala de aula e só ter um aluno”. Aí, eu vou pra uma pré-candidatura, na eleição mais difícil que a gente vai ter na história. Eu vejo pouco o Otto, e isso sobrecarrega ela.
Joana
Mas, é um esforço da família…
Jaque
A gente conversou antes da candidatura. Eu falei “Amor, vai ter isso, você topa? Eu vou perder ele e você vai me perder.” E tudo bem, a gente vai conseguir, porque se der certo, a gente vai se movimentar lá pra frente. Em outubro, eu volto. Mas são 6 meses, que eu vou ficar muito fora e muito estressada.
Vocês estão juntas, há muito tempo, né? Como é revalidar essa escolha, todos os dias?
Karol
Vocês falaram um pouco, mas a gente queria entrar nesse assunto.
Joana
Essa escolha, todo dia, é consciente, sabe? Ainda mais quando você passa por muita coisa junto, tipo ter filho. É assim: “Tá difícil, mas eu quero continuar, quero construir.” E aí, você acabou de brigar porque, sei lá, a outra trocou a fralda da criança e deixou a fralda no chão… Você tá irritada, mas vai lá e conscientemente faz um carinho, dá um abraço. Tentar manter isso fluindo, entendeu? Não são 11 anos de tudo rosa, tudo flores. É trabalho, é suor também. Claro que tem muitas coisas boas e maravilhosas, mas também é muita dedicação.
O que, pra vocês, é a especificidade do amor sapatão?
Jaque
Caraca, que pergunta! Podia ter mandado umas 2 semanas atrás…
Julia
Sem muita pressão.
Joana
Na dupla maternidade, o que eu acho que pega, é que as pessoas ficam colocando essa coisa do papel do homem e do papel da mulher, como se ela estivesse fazendo o papel do homem. Porque eu gerei, e eu tô, agora, mais responsável por ele, com mais tempo. E ela tá mais fora.
Só que é diferente. Na dupla maternidade, não existe uma coisa de que eu que vou decidir tudo sozinha. Tudo, a gente quer compartilhar e decidir junto.
Jaque
O que é muito específico, pra mim, na relação entre duas mulheres, é não repetir, não projetar estruturas heteronormativas. Às vezes eu penso: “Calma, você não tá fazendo igual homem, você tá fazendo o que tem que fazer” ou “Não seja o mau homem.” Por exemplo, eu tô com muita dificuldade de acordar à noite para cuidar do Otto, por conta da medicação que eu tava tomando e parei. Muito raro eu conseguir pegar ele no berço e levar até ela, pra ela dar de mamar. Isso me corrói. Eu me sinto o macho deitado e dormindo e ela lá resolvendo, entendeu? Então assim, isso é que é difícil. É entender que eu não sou um macho. Eu tô fazendo isso porque eu não estou aguentando fazer tudo. Eu voltei a trabalhar cedo. Ela não. Mas eu não vou aceitar isso, eu não vou me justificar que eu tô cansada, eu vou continuar fazendo esforço, vou tentar dormir e tal.
Joana
Eu acho que tem uma coisa de igualdade maior entre mulheres do que em um relacionamento heteronormativo. Eu só tive um relacionamento com homem (cis), eu era muito nova, então, não sei se eu consigo comparar muito bem, não sei se ainda hoje existe isso. Talvez seja algo que fica no imaginário coletivo de relações antigas: a mulher tendo que servir o cara em tudo. “Olha, não vai fazer isso” ou “Você vai deixar seu marido fazer não sei o quê, vai acabar perdendo.” É sempre a mulher querendo manter o casamento e o cara ali meio que vai indo, né? Acho que a condição de duas mulheres é uma coisa mais de igual para igual. As duas vão trabalhar pro relacionamento. As duas vão fazer por onde.
Jaque
Não tem uma demanda que o hétero tem.
Joana
Se uma pára de tentar, eu acho que a coisa não flui mais.
Jaque
Eu acho que eu concordo mais com ela, do que comigo. (risos) Duas mulheres não têm alguns questionamentos. Não tem tanta expectativa, de cada um ocupar um lugar. A lésbica e o gay não são iguais ao hétero, o negro e o indígena não são iguais ao branco. A sociedade não trata assim. Então a gente tem que falar, porque, ainda, é desigual.