Jaque e Desirée

Jaqueline Andrade e

Desirée Santos

A imagem mostra duas mulheres negras sorrindo em pé na entrada de uma casa. A mulher à esquerda está usando um vestido com estampa de oncinha e tem cabelo curto e crespo. A mulher à direita está usando uma blusa vermelha e uma saia com estampa floral, e tem cabelo preso em um coque alto. Ambas estão descalças e parecem estar em um momento descontraído e alegre. A porta está aberta, revelando um interior com paredes de cor madeira e alguns objetos ao fundo. A luz do sol ilumina parcialmente a cena.
A imagem mostra duas mulheres negras deitadas lado a lado, em sentido oposto, olhando uma para a outra. A mulher à esquerda tem cabelo curto e crespo, e está usando uma blusa com estampa de oncinha. A mulher à direita tem cabelo trançado e está usando uma blusa vermelha sem mangas. Ambas parecem estar em um momento de tranquilidade e proximidade. A iluminação é suave, criando um ambiente acolhedor.
A imagem mostra duas mulheres negras deitadas lado a lado, olhando uma para a outra. A mulher mais próxima da câmera está usando um brinco de argola. A outra mulher, que está mais ao fundo, está usando uma blusa vermelha. A iluminação é suave e cria um ambiente íntimo e acolhedor. As expressões faciais delas parecem ser de tranquilidade e conexão.
A imagem mostra duas mulheres negras em um quarto. A mulher à esquerda está sentada em uma cama, lendo um livro. Ela está com tranças box braids presas em um coque alto e veste uma blusa vermelha. A mulher à direita está de pé, olhando pela janela. Ela tem cabelo curto e crespo e usa um vestido com estampa de oncinha. A luz do sol entra pela janela, iluminando parcialmente o ambiente. As cortinas são de cor amarela. O quarto tem uma atmosfera tranquila e íntima.
A imagem mostra duas mulheres negras deitadas em uma cama, abraçadas e com os olhos fechados, parecendo estar descansando ou dormindo. A mulher à esquerda tem cabelo escuro e trançado, usa um alargador pequeno, está vestindo uma blusa vermelha e várias pulseiras coloridas no braço. A mulher à direita tem cabelo curto e crespo e usa um brinco de argola. Elas estão deitadas sobre um cobertor azul com padrões geométricos. A cena transmite uma sensação de intimidade e tranquilidade.
A imagem mostra duas pessoas deitadas em uma cama, rindo e abraçadas. Ambas são mulheres negras. A mulher à esquerda tem cabelo comprido e trançado, e está usando um alargador na orelha. Ela está vestindo uma regata vermelha. A mulher à direita tem cabelo curto e está usando um brinco de argola. Ambas parecem estar muito felizes e confortáveis, compartilhando um momento de alegria e intimidade. Elas estão deitadas sobre lençóis de cores escuras e claras.

[Desirée] Eu sou Desirée Santos, tenho 29 anos. Sou do signo de peixes. Sou arte educadora, diretora. Trabalho em um coletivo em Honório Gurgel, moro entre a Maré e Madureira.

[Jaque] Eu sou Jaqueline Andrade. Tenho 38 anos. Sou nascida e criada na Maré. Sou atriz. Sou assistente social, de formação. Estou fazendo mestrado na UFRJ. No (Programa de Pós-Graduação) Artes da Cena. Sou macumbeira, pisciana também, um casal de piscianas (risos). Sou sapatão, preta.

Como vocês se conheceram?

[Jaque] Fala aí, minha amiga, como é que foi que você fez comigo! (risos)

[Desirée] A gente se conheceu em 2018.

[Jaque] A gente começou a trabalhar juntas, na verdade, porque o Wallace (Lino) tem um coletivo de teatro, o grupo Atiro, e eles montaram um espetáculo. Tinha uma ideia, uma grande ideia. E aí, nessa grande ideia, tinham 4 espetáculos. E em um deles, Desirée foi participar como dramaturga, não foi, amor?

[Desirée]
É, eu fui convidada para fazer a dramaturgia e aí, depois, eu fui convidada para fazer a direção… Fizemos juntos a dramaturgia e fomos dividir a direção (Desirée e Wallace).

[Jaque] Eu tava como atriz convidada do espetáculo. Já havia uma relação entre a (Cia.) Marginal (de Teatro) com o Atiro, grupo do Wallace. Aí, a gente se conheceu nesse momento, com ela diretora. Só que eu não tava ficando muito no Rio. Eu tava viajando pelo Palco Giratório (projeto do Sesc, de circulação de Artes Cênicas). Então eu não tava fazendo muito rolê. Mas aí… Pô, eu lembro que o Wallace falou: “tem uma menina que vai tá no projeto, que você vai achar muito gata.” (risos) Aí ele falou o nome da menina, e não era ela! (risos) E eu falei: “Pô, realmente a mina é muito, muito linda. Mas aquela outra, é muito mais!” E ele: “nem comenta, aquela ali é maravilhosa…” Mas eu achava que ela era hétero! Então, eu pensei: “dane-se”, e fiquei na minha. Depois que eu descobri que ela não era hétero.

[Desirée] É… Aí passou um bom tempo, né?

[Jaque] A gente conversava… Ficava de papinho… Mas nada muito firme. Até que numa festa, ela me agarrou. (reações) É?

[Desirée] É…

[Jaque] É, sim! Você veio com um papinho todo pra cima de mim, eu saí correndo para o banheiro e você foi atrás de mim. (risos)

[Desirée] Foi isso…

[Jaque] A gente foi numa festa de um amigo. Eu tava pegando cerveja, tava na mó paz, tentando ficar na paz… Aí ela chegou no meu ouvido assim: “não sei o quê, não sei o quê, num sei que lá…”

[Desirée] Não! Eu perguntei se você gostava de branco…

[Jaque] Ah….

[Desirée] Eu perguntei isso!

[Jaque] Branco? Olha como foi a pergunta! (imita Desirée perguntando baixinho no ouvido) Que perguntas são essas no ouvido da outra?! (risos) A sapatão ficou toda desconjuntada. Fiquei toda derretida. Saí voada pro banheiro. Eu corri pra caralho até o banheiro. Quando eu olhei pra trás, quem tava ali atrás de mim?!

[Desirée] Era eu…

[Jaque] A gente ficou no banheiro. Aí o Wallace entrou, pegou a gente, falou: “Sapatonas!’ (risos)

[Desirée] Ele tava no banheiro das mulheres e saiu assim. Caraca, foi muito engraçado.

[Jaque] Aí, depois disso, a gente não ficou mais, né, amor?

[Desirée]
Não… Eu fui muito criticada… Me envolvendo com as pessoas do trabalho…

[Jaque] A gente trabalhava junto, né… E eu tava namorando na época, mas o meu namoro sempre foi aberto. E ela (Desirée) tava ficando com outra pessoa também, e levou uns coió aí, do pessoal. Então, a gente não ficou mais. A gente ficou dessa vez, e não ficou mais. Aí, depois de um tempo, a gente foi ver Arame Farpado (espetáculo criado por alunes perifériques da Escola de Teatro da Unirio), né, amor?

[Desirée] Foi.

[Jaque] Depois da peça, ela ficou me dando confiança no bar. E eu levei ela pra casa… Mas foi de boa! Levei ela pra casa pra dormir, porque ela tava muito bêbada. 

[Desirée] Foi mesmo!

[Jaque] Ela dormiu bonitinho. Ela fez só dormir. Eu fiquei cuidando dela. Ela podia ter ido embora com o amigo dela. Mas ela quis ficar, porque ela tava querendo, né, dar uns beijinhos…

[Desirée]
Eu fui viajar, e a gente não se falou mais, né? Fui pra Bahia visitar minha família e fiquei lá uns 2 meses. Voltei pro Rio. Aí, a gente se falou pra ver uma peça. Eu fui com um amigo. Cheguei lá, e ela estava. Aí eu fiquei assim: ‘Ai…’ Ela ficou piscando pra minha cara, dando umas piscadinhas. Eu falei, “ai, eu vou ficar, gente…”

[Jaque] Eu gosto de piscar para as pessoas. Ela me olhava e eu… (pisca) (risos)

[Desirée] Eu acabei ficando… Eu fui pra casa dela, né? A gente foi, dormiu e só foi ficar no dia seguinte, na hora de ir embora…

[Jaque] Depois, a gente parou de se falar um tempinho de novo. Você viajou, de novo. Na volta, você me mandou uma mensagem me chamando pra sair. A gente se encontrou aqui no Parque União. Aí a gente começou a ficar firme, né? De verdade, ficando, ficando, ficando, ficando. Um dia eu fui para a casa dela, em Madureira, né?

[Desirée] Não, eu tava morando em Honório.

[Jaque] Ah, é, isso… Era 2019. Eu ia começar a viajar de novo, fazer o circuito BR (de circulação teatral). Então, a gente ia passar por 3 cidades do nordeste, eu ia ficar um mês fora. Então, eu fui pra casa dela, dois dias antes, pra me despedir. A gente ficou, eu dormi lá com ela… Quando eu tava indo embora, porque tinha que arrumar mala pra viajar, ela me pediu em namoro.

[Desirée]
É, no 355. (risos)

[Jaque] Caraca, foi assim. Eu morava em Ramos. Eu ia descer na Passarela 10 (na Av. Brasil), né? Aí na Passarela 11, que era uma antes, ela me pediu namoro.

[Desirée] É. Porque eu fiz o seguinte raciocínio: se ela falar “não”, eu vou seguir a viagem de volta chorando… Agora, se ela falar “sim”, eu vou sorrindo, feliz. Foi por isso que eu pedi a ela no último momento. Foi bem estratégico.

[Jaque] Eu fui embora assim (surpresa)… Mas eu aceitei. A gente tá juntas desde então, né, amor? Tem 5 anos. Aí, agora, a gente resolveu juntar as calcinhas.

E como é que tá isso?

[Jaque] Agora a gente deu uma paradinha, a gente tava procurando casa… Mas aí tem questão de grana, de trabalho. Ela vai se iniciar já, já. Mas a gente vai voltar a procurar.

[Julia] Até que pra sapatão vocês demoraram um bom tempo, né?

[Jaque] A gente sempre fala isso, a gente saiu do padrão.

[Desirée] A gente resolveu esperar.

[Karol] Mas vocês estão procurando por aqui, na Maré?

[Jaque] A gente gosta, eu gosto muito da Maré. Eu fiquei morando fora da Maré de 2015 até 2022. Por 7 anos, eu morei em vários lugares da cidade e resolvi voltar pra cá, pra perto da minha mãe e tudo mais. E ela (Desirée) acha que é mareense, então assim…(risos) Ela é mareense honorária. Então, a gente decidiu morar aqui. Além, também, de ser mais barato, mais perto de tudo… Aqui é muito perto das coisas. E a gente tem uma rede muito forte de amigos aqui.

[Julia] Ah, muito gostoso você poder estar na janela fumando cigarro. E aí passa, seu amigo.

[Jaque] E pára aqui, dorme aqui… Sábado, Wallace veio pra cá, em 2 segundos já tava dormindo.

Vocês são monogâmicas?

[Jaque] Não sei se a gente chega a ser monogâmicas… A gente tem um trato de poder ficar com outras pessoas. Só que a gente não pretende se aprofundar com outras pessoas, entendeu? Então não sei se a gente de fato é não-monogâmica, a gente só é aberta.

[Karol] Ah, sim, me identifico…

Como é, pra vocês, a relação com a religião, com a espiritualidade. Como isso atravessa a vida de vocês

[Desirée] É uma relação bem tranquila, porque logo no início, quando a gente começou a namorar, ela se iniciou. Não tinha nenhum ano. E aí ela ficou de preceito da religião que é de 3 meses. Bem no início do namoro. A gente ficou, assim, construindo… Eu também já era da religião, mas não era tão firme como ela. E aí já peguei logo um preceitão de 3 meses! Eu ia visitar… foi uma coisa bem tranquila. E, agora, eu tô nesse momento. Eu vou me iniciar mês que vem, também vou ficar bem afastada. Só retorno no final de julho. Mas eu acho que é bem tranquilo, por conta de, logo no início, a gente já ter tido esse tipo de troca, de entendimento em relação a religião. E é a mesma religião.

[Jaque] Por a gente ser da mesma religião, a gente tem umas trocas muito boas sobre isso. Eu tenho 4 anos (de iniciação), então eu não sou nada, sou muito novinha, mas eu já consigo falar algumas coisas para ela, que ajudam em algum lugar, né? E essa coisa do preceito, que é super intenso. O preceito de 3 meses. Pra quem consegue ficar em casa, é mais tranquilo. Mas ela vai ter que trabalhar. Eu, também, trabalhava… Então, assim, tem uma intensidade na coisa do preceito, porque você precisa fazer mais coisas para garantir que seu preceito seja bem feito, então você nunca sai de casa. Eu sempre falo para ela, depois que você entende que a religião te muda completamente…. Em algum lugar ela realmente te muda. Desde que eu me iniciei, eu nunca mais saí de casa sem pensar em como vai ser meu dia na rua, porque eu não estou sozinha. Eu sempre penso, como eu vou fazer? Por exemplo, hoje é segunda-feira, é um dia tranquilo pra mim. Tem dia que eu tenho que tá mais preparada pra ir para rua. Quarta-feira é um dia que eu preciso estar arrumada pra ir para rua, não posso sair com qualquer roupa, sexta-feira, a mesma coisa. A gente nunca mais sai sem pensar no processo. É diferente pra sempre. Eu acho que é bacana a gente compartilhar isso enquanto casal. Mesmo que a gente seja de casas diferentes. Eu sou de Maricá.

[Desirée] E eu sou de Santa Cruz da Serra.

[Jaque] Mas os nossos pais de Santo são do mesmo orixá. Oxaguiã. E eles se conhecem. Eu tenho uma mãe de Santa, e o dela é pai de Santo. E é muito bom, porque a minha mãe de Santo tá best friend da irmã dela.

Vocês sentem uma mudança de quando não eram tão próximas da religião?

[Jaque] Sim. A vida ganha uma outra estrutura. Por exemplo, agora vai ser mês de julho. Eu tenho uma rotina muito intensa no meu barracão, porque é o mês do meu Santo. Então, eu preciso tá lá toda semana. Que é uma coisa que eu não faço com essa frequência. Eu não vou lá desde fevereiro. É longe, né? É bem difícil, pra gente que é aqui do Rio, chegar lá. Amanhã, eu vou ter que ir no Mercadão, comprar coisa pra quinta-feira ir para lá… A minha rotina no trabalho vai ter que mudar. Eu já fiz até calendário, pra mandar pra minha chefe. Isso faz parte da minha rotina. Eu me preparo pra julho. Nos outros meses, eu consigo fazer com mais facilidade, dá pra ser mais maleável. Se eu faço uma peça, já tenho que deixar mais ou menos azeitado que em julho é difícil pra mim.

Qual é o seu Santo?

[Jaque] Sou de Xangô.

[Desirée] Eu sou de Ogum, vou me iniciar pra Ogum, até então…

[Julia] São dois santos bem fortes, né?

[Jaque] Tem que ver quando a gente briga! Ela é cheia de marra… (risos)

Como é a relação com a família de vocês?

[Jaque] É muito tranquilo pra mim. Minha família adora ela, tão sempre perguntando por ela. Minha mãe gosta muito dela. O meu pai faleceu, a gente tava no meio da pandemia, então ele acabou não conhecendo ela muito bem. Mas, o meu irmão conhece, as minhas primas todas conhecem. Minha mãe, outro dia, chamou Desirée pra ir para casa dela sem me chamar, inclusive! (risos) Meus pais conheceram todas as minhas namoradas antes de Desirée e sempre foi de boa.

[Desirée] Lá em casa é a mesma coisa, né? Meu pai não mora aqui no Rio, então, ela não conhece o meu pai. Ele morou aqui por um tempo, mas ele é do interior. Então, ele voltou para Bahia. Ele mora em Belmonte. Ele vive falando pra gente ir lá, visitar ele. Com a minha mãe, é uma relação muito boa também, de muito respeito. Ela gosta muito da Jaque, sempre pergunta… Minha mãe é evangélica. Então ela fica muito mais em casa, diferente da mãe da Jaque. A minha mãe é mais reservada, mais caseira.

[Jaque] Ela é super respeitosa, todas as vezes que eu fui lá. Eu passei o Ano-Novo, antes de me iniciar, lá, com elas. Ela foi super fofa. Não me conhecia, e me recebeu super bem. E a irmã dela, nossa!

[Desirée] A minha irmã gosta mais da Jaque do que de mim. (risos)

[Jaque] Ela me defende. É muito bom. Ela é maravilhosa.

[Desirée] E ela é uma figuraça. Ela é defensora mór da Jaque. A minha irmã é muito minha amiga, né? Nós temos a diferença de 1 ano, então a gente é best friend. Aí, toda vez que eu vou conversar com ela, quando digo que eu briguei com a Jaque, ela diz “Ah, você tá errada, tem que parar de perturbar a garota, deixa a filha do rei em paz!” É muita troca. Hoje em dia, se esse relacionamento acaba, é capaz da minha irmã acabar o relacionamento comigo! (risos)

[Jaque] Você sabe quem vai levar a guarda dela, né? (risos) É tudo muito tranquilo. A minha prima Eduarda, que também é sapatão, adora a Desirée. As nossas famílias não se conhecem entre si. Mas, as nossas relações com a família uma da outra são bem bacanas. É tudo bem tranquilo, não tem peso, não tem problema, sabe? É bem equilibrado e gostoso, também.

[Desirée] A minha família, por parte de pai, ninguém conhece Jaque. As minhas tias, por morarem longe, não conhecem. Eu tenho uma tia que é a primeira sapatão da família, a primeira do seu nome, e ela é louca pra conhecer a Jaque, mas ela vive mudando de cidade, aí a gente nunca consegue se encontrar. Eu tô esperando, em algum momento, ela cair aqui no Rio pra elas se conhecerem.

Então, essa tia foi uma referência pra você, de alguma forma?

[Desirée] Foi. Nossa, ela me ajudou muito. Principalmente quando ela tava aqui no Rio. Minha tia é uma figura! No início, eu fiquei muito receosa de falar pra minha família. Eu me assumi quando eu tinha uns 14 anos. A minha tia já era sapatona, e eu acho que ela já sabia…

[Jaque] Elas sempre sabem né…

[Desirée] Ela vinha conversar comigo, ela era muito minha confidente. Ela foi uma grande referência pra mim. Eu pensava: “Vou esperar fazer uma certa idade para falar”. E ela foi a pessoa que me motivou a falar mais cedo.  Ela disse “acho melhor você não esperar fazer 18 anos para falar nada, não. Fala agora.” E eu falei “mas eu vou apanhar!”. E ela “Eu não apanhei, então você não vai apanhar. Você se esconde atrás da titia” Porque a minha tia é uma mulher de 1.90m! Mas aí deu tudo de boa. Contei pro meu pai, pra minha mãe… Minha mãe ficou tranquila. Ela só ficou com medo do externo, né? Porque eu saía muito, ficava muito na rua, andava de skate, então, minha mãe tinha muito medo de acontecer alguma coisa. Abusos, essas coisas. Então, ela sempre falava para tomar cuidado com as meninas com quem eu fosse me relacionar. Onde a gente ia se relacionar, em público… Ela ficava com medo da gente ser agredida ou abusada. Então eu tive esse cuidado ainda bem nova.

As novas gerações, a galera já cresce com referência, né? Mas, a gente, ainda…

[Jaque] Pois é. Eu e Desirée temos 9 anos de diferença. Eu me assumi pros meus pais com 23 anos. Esse pensamento de “Ah, vou esperar fazer 18…”, foi o que eu fiz! E nem foi com 18… Um dia, eu cheguei em casa e resolvi falar. Porque eu já tava fora há uma semana, namorava fora de casa. Eu não morava mais aqui, praticamente. Quando eu disse que tava namorando, eles abriram um sorriso, muito feliz. E eu: “é com uma mulher” e eles, fon… E um comentou com o outro “Eu não disse?”, “Eu falei!”. (risos)  Pô, eu trocava de melhor amiga de mês em mês, então assim, sem condições deles não sacarem… Depois que eu falei pra eles, foi essa  mesma preocupação: “Só me preocupo de você sofrer violência na rua, então, toma cuidado”. Não foi nenhum mar de rosas, mas nunca foi do tipo: “você não pode ser assim.”

Como é com o entorno de vocês? Como vocês se sentem com vizinhos, e socialmente, aqui e em Madureira? Vocês se sentem à vontade para andar na rua?

[Jaque] Depois que eu decidi que ia contar com meus pais, eu nunca tive questões com carinho, com andar de mão dada, em qualquer lugar. Para mim, isso não é um tabu. Eu não tenho problema com isso aqui. Eu ando com ela, a gente se beija… Em qualquer lugar.. Meus vizinhos todos sabem: “Ah lá, a sapatona amiga do viado”...

[Desirée] É, “aquela sapatona ali da esquina…” (risos)

[Jaque] É, porque o Wallace mora nessa rua, né? Ele nasceu, cresceu nessa rua. Então, ele é referência. A bixa mais bonita da Maré. Aqui é um entorno bem tranquilo, todos meus vizinhos sabem.

[Desirée] Madureira também.

A Maré é muito forte, muito potente, culturalmente. Como é a relação de vocês com essa ancestralidade? A Noite de Estrelas (peça), traz muito essa história…

[Jaque] Pra mim, é muito forte, porque eu sou daqui, né? Então, eu tenho um contato muito intenso com esse território. Eu tenho questões muito fortes de amor, de raiva, e são sentimentos muito explosivos. É o que eu falo na minha dissertação: a Maré tem um lugar de ancestralidade muito forte no território. Ela foi construída por pessoas pretas, nordestinas, LGBTs, sabe? Esse lugar, aqui, em que a gente tá, Nova Holanda, foi construído nesse rolê de gente que tava vindo de outros lugares, já tentando construir sua vida aqui. Tem uma carga ancestral muito forte aqui nesse território. As pessoas negras que construíram, minha avó que tava aqui, a mãe do meu melhor amigo, que tava ali… Essas pessoas que botaram os tijolos desse lugar ainda tão aí. E não vieram pra cá, pra ficar aqui. Esse espaço aqui pra ser provisório, mas as pessoas decidiram que ele ia ser um espaço definitivo e ficaram. Não foram embora, não se deixaram expulsar de novo. Então, isso é muito importante, né? É um território que me emociona muito. Eu já me senti expulsa da Maré por conta do que eu sou. Em algum momento, quando eu morava aqui, a minha casa pegou fogo, eu fui embora. Muito do que eu senti foi que essa casa pegou fogo, também, por uma lesbofobia. Porque as pessoas viram o fogo acontecendo e não fizeram nada. Eu só voltei pra casa no dia seguinte. Eu não tava em casa. E, em algum lugar, eu sabia que era como se “Ah, tudo bem, se essa sapatão morrer”. É um terreno muito violento, mas é muito acolhedor. É isso. Tem pessoas que me acolhem. O bar aqui do lado, a gente fica zuando que o seu Henrique é meu pai!  Eu vou lá, pego dinheiro, troco por Pix, deixo minha chave com ele… É um território que já me violentou, mas que também me acolhe muito. Me acolhe porque minha família tá toda aqui, por parte de pai e de mãe. O ‘Noite das estrelas’ faz esse resgate de pessoas LGBTs que tão nesse lugar, e que também sofreram com essas violências, foram expulsas daqui. O seu corpo não cabe nesse lugar, mas ainda assim você consegue fazer um movimento… e o seu corpo é aplaudido, é ovacionado.  A ideia da Maré enquanto um refúgio. E não só refúgio pra quem já tá aqui, mas pra quem vem de fora também, que não pode ficar no seu lugar de origem. Seu lugar de origem já não te cabe mais. E aí, a Maré também vira esse lugar de refúgio, esse lugar de “Pode chegar, que a casa é sua”.

Desirée, e a Jaque disse que você acha que você é mareense?

[Desirée] É… (risos) Acho que é por conta da relação que eu fui construindo. Antes de fazer, em 2018, o espetáculo com o grupo Atiro, eu já ficava na Maré, vinha trabalhar aqui.

[Jaque] Eu nunca te vi aqui na Maré! (risos)

[Desirée] Eu trabalhava ali pelo Centro de Artes (da Maré).  Eu já fazia uma atividade aqui desde 2016.

[Jaque] Ah, você viajou pra Londres até nessa época, né?

[Desirée] Sim. Foi. Eu fazia uma atividade aqui, que era pela ‘Spectaculu’ (Escola de arte e tecnologia).

[Jaque] Que é onde eu trabalho agora.

[Desirée] E aí, acabei conhecendo o território, em 2016. E assim, pra fazedor de cultura periférico, é um território muito rico, né? O Centro de Artes (da Maré) é uma grande referência. O Bela (Maré), também. Então, eu ficava muito por aqui. Eu já me considerava da Nova Holanda (risos), cria. Aí, em 2018, quando eu vim pra cá para fazer o espetáculo (Corpo Minado), passei a vir com mais frequência, por conta dos ensaios. Então, eu acabei conhecendo mais ainda o território. No pós ensaio, o Wallace fez questão de andar comigo, porque ele achou que eu tinha medo de andar por aqui. Ele fez uma tour comigo.

[Jaque] Foi?

[Desirée] É, foi! Me levou um pra um monte de beco, e eu fiquei assim: “Gente, pra onde que esse cara tá me levando?” (risos) Ele achou que eu não era favelada… Eu nasci na Pavuna, morei lá até uns 7 anos, quando eu fui morar em Madureira. Cresci minha vida inteira em Madureira. Mas eu era andarilha, sempre fui da vida. Eu vinha pra cá e ficava andando… Fui conhecendo mais o território. Até porque, todo mundo que a gente trabalhava era daqui, o projeto em que eu tava inserida era daqui. E aí, fui me apaixonando. Então, eu tenho uma relação de afeto com a Maré, muito grande. É um território que, pra mim, é acolhedor, porque ele é muito parecido com os lugares em que eu morei. Têm as diferenças, lógico, das violências. São muito diferentes, as violências daqui, do que acontece em Madureira. Eu moro em Madureira, mas não moro diretamente num território de favela. Então, as violências que eu sofro aqui, como a violência policial, são totalmente diferentes das de lá. Mas é um território que me acolhe em outros sentidos… do fluxo de pessoas, de poder estar no bar, de poder ir na rua, de pessoas que são muito parecidas comigo. Eu gosto daqui, e é essa a relação que eu acabei construindo.

E como é, pra vocês, trabalhar juntas?

[Jaque] Eu acho muito tranquilo. A Desirée é muito séria. Eu sou muito mais (interjeição destrambelhada) do que ela. Ela é super rígida com o trabalho dela, mas ela não é uma (pessoa) séria que não dá brecha pras coisas, sabe? Então, a gente troca muito. Quando ela é diretora; no caso, ela é diretora do Corpo Minado, e eu sou atriz; a gente tem umas trocas muito legais, porque tem um espaço de escuta dela, que não é só comigo, porque eu sou a namorada dela. É um espaço de escuta com as atrizes. Eu admiro muito isso nela. Eu acho ela uma diretora muito incrível, muito foda. Eu acho que ela vai fazer muita coisa incrível ainda. Eu tenho muito orgulho, (own coletivo da equipe) porque eu acho que ela tem um olhar super sensível. Muito empático, muito artístico, foda. Ela é muito inteligente. Ela tem a cabeça desse tamanho! (risos)

[Desirée] Own, amor… Obrigada…

[Jaque] Muito cabeçuda. Ela é sinistra. Ela faz um negócio, e eu fico, “caraca, tu já fez?!” Trabalhar com ela é muito bom, pra mim, porque é um lugar de troca e de aprendizado muito grande. Eu não imaginava que ia ser assim, porque sempre dá caô, né? A gente sempre ouve que trabalhar com companheira sempre vai dar merda em algum momento. E não é que não tenha dado…. A gente teve que ter muita conversa. Mas tem espaço pra conversa, isso é o mais legal. Se der problema, a gente vai conseguir resolver, porque a gente sabe que a gente tem essa abertura pra falar do trabalho enquanto artistas, enquanto trabalhadoras, não só enquanto namoradas. A parte ‘namorada’, ‘companheira’, não atravessa de um jeito ruim. A gente consegue trabalhar bem juntas. A gente tem quantos trabalhos juntas, amor?

[Desirée] ‘Corpo Minado’ e ‘Hoje eu não saio daqui’ (da Cia. Marginal).  

[Jaque] Em ‘Hoje eu não saio daqui’, ela fez a assistência de direção da Isabel (Penoni). Ela dirigiu toda a minha cena.

[Desirée] A sua, a da Geandra (Nobre) e a do Wallace. 

[Julia] É lindo, esse espetáculo.

[Jaque] A gente tem esses 2 trabalhos juntas. Acho que no ‘Hoje eu não saio daqui’ foi o momento mais crítico, nosso, da relação. Porque a gente tava começando a namorar, e ela tava trabalhando comigo num lugar de assistente de direção. Foi ali que a gente foi construindo esse espaço de diálogo, né? Porque no ‘Corpo Minado’, a gente não tava tão próximas, na primeira temporada. A gente só foi engatar mesmo depois. Mas, no ‘Hoje eu não saio daqui’,  a gente conseguiu construir essa base de troca, de conversa. Eu podia ser honesta com ela sobre as coisas que eu estava achando. A troca com a direção também era muito bacana. E tem uma coisa assim: “Ah, ela é muito nova, você não vai dar atenção. ” Eu acho que é o oposto, porque ela tem muita coisa pra me dizer. Eu ouço muito o que ela diz sobre as coisas que eu tô fazendo. Eu sou muito mais insegura. Ela me dá vários puxões, tipo “cara, tu tá mandando bem” Ela me incentiva.

[Desirée] Mas também era uma insegurança fazer as coisas lá, porque era uma galera muito experiente, né? Então, eu ficava apavorada. De ter que lidar com a cabeça, do tipo “Ninguém vai entrar na minha mente, ninguém vai entrar na minha mente.” E aí, ia embora!

Você se considera mais atriz ou diretora?

[Desirée] Ah, eu odeio atuar. Eu gosto mais da direção. É o que eu estudo. Eu faço direção teatral na UFRJ. Eu comecei a fazer teatro no ginásio, eu comecei na atuação, né? Eu nem sabia que existia faculdade de direção. E aí, depois de um tempo, eu tentei UNIRIO (no Centro de Letras e Artes), mas eu não quis. Eu queria fazer direção, descobri que tinha direção teatral no UFRJ e queria fazer na UFRJ. Não lembro bem o porquê, acho que eu tava bem equivocada (risos).  Eu achava que era lá no Fundão (campus da UFRJ, na Ilha do Governador), que eu ia ficar integrada com a galera de cenografia, e indumentária. Aí, me frustrei. Cara, foi tudo ilusão, eu fui enganada! É, ali, na Escola de Comunicação (Campus da Praia Vermelha, Urca). Mas tô lá, eu já tô terminando, tô no último ano. Eu descobri que eu gostava da direção. Eu não gosto muito de atuar. Eu gosto de estar estudando, pesquisando… E aí por ter vindo de uma escola técnica de arte, que é a Spectaculu, eu já vim com outro olhar, pra uma parte mais técnica, mesmo. É o que eu gosto de fazer.

O que é importante para vocês num relacionamento?

[Desirée] Ah, eu acho que é a conversa.

[Jaque] Eu acho que é a cerveja. (Risos)

[Jaque] A cerveja é, sim, importante, mas eu acho que a gente conseguiu criar um espaço de conversa realmente muito bacana, de escuta. Para mim, o mais importante é ser leve. Quando tá pesando muito, eu já fico estressada. Que a gente consiga trocar ideias e que as besteiras não tomem um peso maior do que elas deveriam ter. As coisas não tem que ter um peso maior do que elas deveriam ter, sabe? Então, a gente conseguir sair de uma briga e brincar uma com a outra… Tadinha, ela sofre em casa comigo, eu passo o dia perturbando essa mulher.

[Desirée] Eu só quero ficar quietinha. (risos)

[Jaque] Eu tenho picos de energia. Eu acabo pulando, dando a louca, dançando. Eu faço músicas pra ela, várias.

[Karol] Ai, que fofo.

[Desirée] Fofo?!

[Jaque] As músicas são muito horríveis. As músicas são uma ode a ela, mas são péssimas, gente.

[Julia] Canta uma aí?

[Jaque] É da inspiração. É na hora, do nada, eu mando uma letra qualquer aleatória.

[Desirée] A primeira que ela fez é aquela…

[Jaque] Ah é, tem uma que…

[Desirée] (cantando) “A minha namorada é uma prostituta, ela é linda, é maluca, é do forró.” Ela cantava pra mim o dia inteiro. Essa eu lembro, nunca vou esquecer. Fora as outras…

[Jaque] Faço muitas paródias pra ela. (nesse momento, Karol já está acabada de tanto rir…) Tem que ser divertido, sabe? A gente tem que se divertir juntas.

[Karol] Letras profundas…

[Jaque] Ontem mesmo, eu mandei umas três pra ela. Enquanto eu tava escrevendo, eu ia, ‘pá!’. 

[Karol] Domingo inspirador.

[Jaque] Tadinha, é cada música, é cada uma… Mas, no geral, é tudo homenagem a ela. Não é nada ofensivo, não.

Qual é, pra vocês, a especificidade de um amor sapatão? O que só existe entre duas mulheres?

[Julia] Difícil essa, né?

[Desirée] Difícil.

[Jaque] Tem muitas coisas que são muito específicas, de sapatão. Por exemplo, tem essa coisa da intensidade, né? Tudo é muito rápido. Mas com a gente não foi. Com a gente, foi tudo mais devagar. Eu acho que tem essa coisa de olhar pra alguém que, em algum lugar, sabe de coisas que você também sente. Porque não somos só duas mulheres que se encontraram. Somos duas mulheres pretas. Tem outras conexões também. Mas eu acho que essa coisa da especificidade, é muito difícil de definir. Porque tudo é muito específico com a gente, tudo é muito diferente. E aí, não tô falando só da gente enquanto casal, mas da gente enquanto uma comunidade sapatona. Eu acho que tem coisas que são muito diferentes quando duas mulheres tão juntas, tão criando uma relação juntas. Tem um lugar de um afeto outro, de um toque de pele… E isso me faz pensar: “caraca, eu nunca vou não querer ser sapatão na minha vida”, sabe? Eu vou querer nascer sapatão sempre, porque, eu gosto de estar com mulheres, eu gosto de estar com ela. Não tem como fugir disso. Para mim, eu acho que tudo é muito específico, porque eu acho que a gente foi feita pra encaixar uma na outra. Eu penso: “gente, porque que mulher perde tempo com homem?” Com mulher é tudo muito mais legal, tudo funciona mais…

[Desirée] É, eu tô pensando, desde os 14 anos sendo sapatona, “o que tem em comum?” Tentando buscar uma coisa. Porque a gente vai conhecendo amigas, pessoas com quem a gente se relaciona, e cada um tem um jeito, né? Uma coisa diferente. Mas eu acho que uma coisa, pra mim, que é específica, é a liberdade de você poder trocar. Olhar pra outra mulher, e ter um outro tipo de acolhimento, mesmo que seja uma mulher muito tímida, mesmo sendo menos falante, tem ali um ponto de encontro nesse lugar da troca. De ter uma abertura pra uma conversa… E que não é tão impositivo. Eu vejo as minhas amigas héteros, tem aquela coisa de ter que corresponder sempre à expectativa de alguma coisa, do cara… E na minha vivência sapatônica, eu acho que eu nunca me preocupei em corresponder à expectativa de nada. Sempre foi muito orgânico, sabe? Mesmo que não fosse um match de amizade, um match de relacionamento, tinha uma possibilidade de troca. Um conforto, uma segurança. Acho que é isso que eu consigo mapear de algo em comum.

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Jade e Pérola
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