Jade Peixoto e
Pérola Acioly
[Jade] Eu sou Jade, tenho 30 anos. Sou daqui do Rio mesmo, mas eu morei em Salvador, morei no Mato Grosso do Sul por um tempo, porque meu pai é militar. Sou dentista, mas eu demorei muito para descobrir e, enfim, fazer odontologia. Antes, eu fiz biomedicina, depois eu fiz odontologia e me aprimorei, fiz pós. Agora eu tô voltando pro teatro, fiz curso de roteiro. Minha mente é uma confusão… (risos) Eu tenho algumas algumas formações, alguns caminhos. Eu acho que eu me divido entre várias profissões, atualmente, entre várias coisas, graças a Deus.
[Pérola] Meu nome é Pérola. Eu tenho 24 anos Eu vou de acordo com os anos, porque eu nasci, em 2000, então fica muito fácil de lembrar. Sou taurina, sou natural de Recife, mas eu morei a minha vida inteira, praticamente, em Olinda, que é uma cidade metropolitana de Recife. Depois fui pra Paulista, que é outra cidade, mais longe ainda, e depois vim pro Rio, pensando em estudar teatro. Eu vim pro Rio pra isso, para estudar. E aí, estou aqui há 6 anos nessa luta de tentar engatar essa carreira.
[Camila] Jade, em que lugar que tu que nasceu no Rio?
A maior parte da minha vida eu morei na zona sul, mas a família do meu pai era do Méier. Atualmente, moro em Vila Isabel, já tem tempo, uns 6 anos já. E ela (Pérola), agora, mora comigo. Tem um ano, mais ou menos.
[Pérola] Antes eu morava em Ramos, com meu pai, que mora aqui no Rio também. Eu saí de Ramos, fui pro Centro do Rio, foi tudo muito rápido. E depois, eu vim pra cá. E me estabeleci.
[Camila] Como vocês se conheceram? Eu sei que existe um vídeo explicativo, mas, se vocês fossem contar juntas, como seria?
[Pérola] Eu frequentava algumas festas, há um tempo atrás, e numa dessas, a Jade me viu num rolê. Eu acho que eu também a vi, só que eu sou míope. Então, ficou, ali, uma incerteza. Só que quando eu, de fato, fui conhecer ela, eu tive muito a impressão de que eu já a conhecia, já tinha visto ela, em algum lugar. Mas, eu segui pensando que ela seria minha dentista e, uns dias depois, a gente tava marcando um date.
[Jade] Eu pensei: “Opa! Uma gatinha me seguindo… hum, tá querendo.” (risos)
[Pérola] E aí, a gente se viu. Eu pensei: “nossa, a gente já se conhece, com certeza!” E aí, foi rolando… A gente foi se encontrando e eu nem sabia que eu era capaz de ser essa pessoa, assim: “Ah, te encontrei hoje, daqui a três dias, eu quero te ver de novo, urgente!”. Quando eu vi, já tava apaixonada!
[Jade] Quando eu a vi na festa, eu tava namorando, então não rolou um flerte, eu só notei a presença dela. Eu lembro que eu tava do lado de fora, na pista, e ela tava no camarote, com uma galera. E aí, eu vi aquela mulher subindo e descendo. Eu pensei: “nossa, será que ela é conhecida?” Porque ela tava no meio de um monte de famoso e eu notei: “Nossa, que bonita”.
[Pérola] A nata! (risos)
[Jade] Aí, eu terminei e, muito tempo depois, ela me seguiu, uns 8 meses depois. Mas, naquele dia, eu notei ela, real. Eu falei assim: ”Nossa, eu conheço essa garota de algum lugar!”
[Camila] Vocês duas tiveram essa sensação de já se conhecerem de outras vidas? Vocês já viram alguma coisa disso, de procurar vidas passadas?
[Pérola] Não, a gente tem a mesma lua e o mesmo ascendente. Isso coloca a gente, às vezes, num lugar de equilíbrio. A gente se encontra e fala: “hum, talvez seja isso”. Culpa dos astros.
[Jade] Piscianas, né? Mas eu não sou pisciana, eu sou sagitariana. Mas o ascendente e a lua são em peixes.
[Julia] Ah, tá explicado! (risos).
[Jade] É muito amorzinho, é muita conversa também! A gente fala muito.
[Pérola] A gente se entende, é bem fluido…
[Karol] Mas você queria uma dentista?
[Pérola] Eu segui pensando que ela iria me atender um dia. E num é que atende, até hoje?
[Julia] Ganhou atendimento vitalício, né? (risos)
[Julia] Vocês são monogâmicas?
[Jade e Pérola] Sim! (juntas)
[Jade] Mas é uma conversa. No nosso primeiro encontro, aqui nesse sofá, uma das primeiras coisas que eu falei, foi isso. Não porque eu estivesse esperando um relacionamento, nem nada do tipo… Mas sei lá, eu gosto de começar qualquer coisa, assim. Eu perguntei pra ela, porque eu já tenho 30 anos, e sinto que a galera mais nova, de 25 anos para baixo, é todo mundo da relação aberta. Então eu já fui perguntar, mas sem cobrança, sem nada. E ela falou: “olha, eu vim de um relacionamento não monogâmico de 3 anos”. E quando ela falou isso, eu pensei assim: “ah, beleza… vai ser só um beijinho e tchau.” (risos). Já entendi como é que vai ser essa relação. Porque pra mim não funciona e não funcionaria um relacionamento totalmente aberto. Eu já tive, mas não funcionaria. Eu não acredito totalmente em monogamia, eu tenho algumas questões. Eu entendo que a monogamia provavelmente não funcione, até porque, senão, não teria a quantidade de divórcio que a gente tem, hoje em dia. E tem um monte de gente que ainda sofre dentro de relacionamentos muito fechados. Eu acredito, também, que a questão do relacionamento aberto é muito mais sobre a abertura pra conversar do que outra coisa. Essa abertura pra conversar, a gente já tem muito. Se o relacionamento aberto fosse só isso, de você poder conversar sobre tudo, inclusive sobre desejos… Eu me sinto muito à vontade, hoje em dia, de chegar pra ela… Enfim, se surgir uma vontade louca, uma pessoa que tá mexendo comigo, eu falaria com ela. Eu me sinto aberta pra ter essa conversa com ela. Mas também eu estou aberta a receber uma negativa, de ela falar assim: “cara, pra mim, realmente, não vai rolar, você ficar com essa pessoa. A gente tenta outras coisas”. Então, eu acredito nisso e acredito também que a gente pode se reinventar em algum momento. Eu não acredito que a gente vai abrir o relacionamento totalmente. Isso, de jeito nenhum, não funciona. (risos)
[Pérola] Isso, é a mesma coisa. É porque você veio de outras experiências. Eu tive uma experiência que, eu tentei até explicar para ela, assim, que foi muito mais teórica do que prática, sabe? Acho que muito por causa dessa juventude. E também era pandemia, então, não tinha possibilidades. Mas nessa outra relação, eu vivi uma relação aberta, que era basicamente um relacionamento monogâmico, onde a gente se autorizava a pensar em, talvez, ter essa liberdade de pensar sobre os desejos e etc. E aí, a gente dizia que era aberto, mas na prática não existia. Era um relacionamento bem controlado até, sabe? Então, eu descartei essa possibilidade, acho que isso não funciona para mim. Fui questionando e entendendo melhor.
[Julia] E era um relacionamento hétero, né? Isso faz diferença.
Pérola
Sim, é completamente diferente. E também tem a raça, essa outra pessoa que me relacionei era uma pessoa preta também, mas que tava num lugar muito sensível de descobrir a própria identidade. Não sei, eu acho que eu fui um pouco ludibriada nessa coisa de relação aberta, porque depois eu me dei conta de que eu tenho algumas necessidades que esse modelo de relação não vai sanar, sabe? Assim, me entendendo enquanto mulher, com todas essas pautas sociais que eu carrego. A gente pensa na possibilidade de flexibilizar, a gente conversa bastante, mas não é uma necessidade minha. A gente vai muito do acordo mesmo: o que funciona e o que não funciona.
[Jade] É isso, eu acho que pessoas brancas estão numa outra linha de pensamento.
[Pérola] Do afeto e do entendimento do afeto.
[Jade] Eu fui ter meu primeiro relacionamento real, assim que eu trouxe pra minha casa e que eu me assumi de verdade, com 21 anos. Então, tipo, como é que eu vou desconstruir uma parada que foi recém construída, entendeu? Eu acho que pra desconstruir a monogamia, eu tenho que viver ela, primeiro. Aí, depois, eu penso se me sinto segura para desconstruir isso. Mas, pra uma pessoa que foi preterida durante uma grande parte da sua vida, é muito difícil desconstruir. Eu não tenho o amor romântico que eu vi pra caralho na TV e nos filmes. Eu não sinto que eu vivenciei de fato. Até nesses relacionamentos meio consumidos, tiveram várias coisas que me engatilharam. Porque eu tive muitos relacionamentos interraciais e, querendo ou não, por mais que a pessoa não faça alguma coisa pra te machucar, às vezes, a imagem daquilo já te machuca.
[Pérola] Socialmente falando, você vai em um lugar e as pessoas já olham, porque você tá sendo acompanhante daquela pessoa. Ela não tá ali com você, é você que tá lá com ela. É quase um passaporte para acessar os lugares.
[Jade] De fazer uma piada, por exemplo. Se você faz uma piada comigo, tem um peso e se uma pessoa branca fizer uma piada comigo, tem outro peso que eu não vou entender legal e vai pesar muito mais. A Pérola é minha primeira relação séria, assumida, com uma pessoa preta e isso faz toda a diferença. Eu senti muito essa diferença e foi até um dos vídeos que eu gravei, a gente falou sobre o luxo que é namorar uma mulher negra, porque eu, realmente, fiquei encantada. Ninguém nunca tinha mexido no meu cabelo com tanta destreza.
[Karol] Eu sei exatamente do que você tá falando, mas eu queria que você nomeasse essas coisas pra gente.
[Jade] Nossa, as diferenças são outras, sabe? Ou até na hora de eu contar algumas situações que me doem, por exemplo. Uma coisa que acontece bastante é ela falar assim: “tá se achando menor por quê? Você tá se comparando com quem pra sua autoestima estar abalada? Quem é essa pessoa que você tá vendo como referência?” Porque, na maioria das situações, eu tô vendo como referência e me comparando a uma pessoa branca. Ainda mais, porque eu convivi muito com pessoas brancas. Isso explica muito o fato de eu ter me relacionado com tantas pessoas brancas. Eu tenho a culpa minha, é claro. Eu não fui atrás disso, mas acho que eu não vi como uma possibilidade.
[Julia] Acho que você não tem que pensar que é culpa sua, não. Você fez o melhor no cenário que te foi dado.
[Jade] Eu acho que a chave da virada de consciência demorou um pouco mais pra virar comigo. Talvez, se eu tivesse até convivido mais com pessoas pretas como amigos, isso poderia até ter ajudado na minha autoestima, por exemplo.
[Pérola] Interessante esse negócio da consciência, eu tenho pensado muito sobre a minha infância. Me dei conta de que, mesmo com as limitações, minha mãe sempre foi uma mulher muito consciente. Ela sempre foi envolvida com política, no meu aniversário de 6 anos, tinha um banner atrás do bolo com a frase: “Lugar de mulher é na política”. Então, desde cedo, ela incentivava a gente a ter senso crítico, botava sempre o estudo como nosso norte, e por isso eu me sinto um pouco radical até, porque, pra mim, as coisas vão muito além. Para um estado de consciência que já está acostumado a não relativizar algumas coisas. Eu e Jade fomos criadas em ambientes completamente diferentes, socialmente falando e, às vezes, o que eu acho inaceitável, ela ainda consegue tolerar.
[Jade] E eu fico assim: “cara, eu sei como é que eles funcionam”. (risos) Não adianta entrar nesse embate, eu já tentei fazer essa porra.
[Pérola] Eu não consigo não viver com raiva. Às vezes é a raiva que me move. É tanta injustiça, tanta coisa absurda que não tem como você ficar de boa.
[Julia] Você acha que ter feito odontologia tem a ver com esse pensamento e que a vinda pro teatro é uma abertura sua para outro mundo?
[Jade] Essa é a questão da minha vida, eu acho. Porque a minha família, eu acho que todas as famílias pretas, a maioria delas, partem do mesmo princípio que o estudo vai salvar a tua vida e você precisa ir atrás disso. E, até a minha família, que partiu de um lugar muito privilegiado, é assim.
[Pérola] Privilegiado, entre aspas. O militarismo é romantizado. Mas, se a gente ver os negros que são militares, eles abriram mão de muita coisa pra ocupar aquele lugar.
[Jade] Quando eu nasci, meu pai já tava muito de boa financeiramente. E eu acho que essa virada de chave para ele mudar a vida dele, e também a minha e do meu irmão, colocou mais ainda na cabeça dele que a gente precisava estudar e que essa seria a única solução pra gente manter o que tinha conseguido. Então, eu lembro que, quando eu fiz vestibular, eu ficava pedindo autorização para o meu pai sobre o que eu ia fazer. Eu procurava a aprovação dele pra ver se aquilo era suficiente. E tudo que era suficiente, pra ele, era medicina ou alguma engenharia. Mas eu sempre fui da arte, a real é essa. E eu falei isso pra ele, lá atrás, e ele falou assim: “então beleza, eu vou pagar o Tablado pra você e mantenha isso como uma parte da sua vida, um hobby, mas você não vai se dedicar a isso”. Teve um momento. que eu fiquei tão confusa no vestibular, que eu pensei: “vou seguir minha vontade, eu quero fazer teatro na UNIRIO”. Aí minha mãe começou a chorar e dizer: “você vai ser pobre, não é? Você vai ser pobre!” (risos) Ela pediu pelo amor de Deus pra eu não fazer isso da vida. E aí, eu pensei que o negócio era muito grave, tipo uma prisão e, por isso, eu realmente precisava pensar em outra parada. Eu lembro muito dessa cena, ela chorou muito e meu pai ficou do lado, sério. Aí, eu pensei em fazer alguma coisa com biologia, porque eu gosto. Eu fiz biomedicina e comecei a entrar em crise porque ia ficar no laboratório o dia inteiro. Tudo bem, eu gosto de estudar e essa pressão em que eu cresci me fez, inclusive, ser uma pessoa muito noiada com estudo. A Pérola sabe, eu sou muito noiada, o tempo todo na minha vida eu tava estudando pra alguma coisa. Até quando eu resolvi mudar de caminho, eu tava estudando muito. Eu lembro que eu tinha crises de ansiedade na terceira série. Eu virava a noite para estudar da quarta série até o terceiro ano.
[Pérola] Na faculdade também, né?
[Jade] Na faculdade, o tempo inteiro. Eu queria manter o CR acima de 8,5. Eu me cobrava nesse nível. A,í eu mantive o teatro na geladeira por muito tempo. Eu comecei a trabalhar com odontologia. Só que eu fui ficando muito triste. Eu conheci a Pérola nessa época, inclusive. Eu tava muito infeliz, mas eu tinha dinheiro. Agora eu estou feliz, mas… (risos) Foi a Pérola que me influenciou a voltar pro teatro.
[Pérola] Eu falei: “bicha, pára de se esconder!” (risos)
[Jade] Ela falou: “se não tá te fazendo bem, procura outras formas.” Aí, eu comecei a produzir conteúdo pra internet, a escrever, a fazer curso de roteiro também. E não é que eu odeio odontologia… Eu adoro tirar siso! (risos)
[Pérola] E ela é ótima, tá? Não é porque é minha namorada, não! (risos)
[Jade] Eu gosto mesmo, só não gosto de fazer isso todo dia.
[Pérola] Viver em função disso, né?
[Jade] É, eu não gosto de trabalhar com empresa, sabe? Eu ia pro trabalho pra ficar fazendo gracinha com os outros. Eu não queria atender pacientes, sabe? Eu queria ficar conversando, zuando, tendo ideias.
[Aninha] Na nossa cultura, a gente tem isso de que a gente tem que ser uma coisa, a gente não pode ser várias. É muito louco isso. Você pode gostar de ser dentista e gostar de arte!
[Pérola] Pra mim, é uma grande facilidade, diferente da Jade. A minha vida inteira, eu sempre quis ser muitas coisas, não conseguia definir uma e minha mãe só falava pra eu estudar e estudar. Só que os meus pais também não tinham referências, sabe? Minha mãe nunca me exigiu, por exemplo, uma profissão. Ela sempre me deixou muito à vontade, e o meu pai também. Por ela me deixar à vontade, escolher a arte foi um caminho muito fácil, justamente porque eu me identificava com muitas coisas. Eu falava assim: “tá aí, vou ser atriz, que eu posso ser um monte de coisa ao mesmo tempo”. Eu queria fazer teatro e a gente não tinha condições de bancar esse sonho. Meu pai veio morar no Rio e foi assim que eu vi uma oportunidade de ficar mais perto de realizar esse sonho, e vim logo em seguida.
[Jade] Isso, jamais, eu iria ter. Jamais! Só se eu falar assim: “vou fazer medicina na Rússia”. O que real foi uma possibilidade, meu pai me ofereceu de fazer. Ele falou: “vamos lá que eu vou atrás e banco o que você quiser”.
[Julia] Ainda bem que você não fez, né? Imagina ter esse peso…
[Jade] Imagina! Eu pesquisei sobre medicina na Rússia.
[Pérola] É muito doido esse negócio de que tem muitos pais que colocam a gente nesse lugar de realizar o sonho deles, projetam isso na gente e é um peso tão grande. A gente não tá vivendo a vida, a gente só tá cumprindo uma missão que não é nossa.
Como é a relação com a família de vocês?
[Jade] É ótima! Chega a ser bizarro, não tenho nem o que falar. Eu e meu pai somos muito apegados, extremamente. Eu lembro que eu nem precisei contar pra ele. Eu pensava: “como que eu vou contar pra alguém que eu sou sapatão?” Eu lembro que eu já namorava uma menina há 1 ano e 7 meses e a gente terminou. Aí, eu comecei a ficar muito triste, aquela primeira depressão pós primeiro relacionamento.
[Pérola] Não faça isso comigo! (risos)
[Jade] De jeito nenhum! (risos) Aí, um dia, ele chegou pra mim e perguntou o que tava acontecendo, por que eu tava tão triste. Eu falei: “pai, tu não sabe…” E falei que tinha terminado um relacionamento e ele perguntou se eu queria falar alguma coisa pra ele. Eu falei: “Não, é isso. Você sabe com quem que é? Você não sabe, não?” Aí, ele falou: “Eu sei quem é.” Eu falei: “quem é? Fala aí então”. (risos) Ele falou assim: “É uma menina que vem aqui, uma loirinha, branquinha, de olho azul, bem branca.” (risos) Eu falei: “acertou!” e comecei a chorar. E ele falou: “Eu só quero que você fique bem”. Eu fui pro meu quarto, terminei de chorar e ele ainda veio com um lanchinho. Ele tinha algumas questões que eu poderia reclamar, mas eu entendo. Ele é um homem preto, retinto, bem retintinho, e militar. No início, ele falava muito “A amiga da Jade”. Mas, aí, eu nem falei nada, eu relativizo mesmo! (risos) Minha irmã que falou assim: “Não é amiga não, é namorada, elas namoram, elas estão num relacionamento.” Mas com a Pérola, acho que ele nunca fez isso. Então, depois de um tempo, ele ficou muito de boa. Ele recebe em casa, faz almoço. A minha mãe também, ela é super de boa. Mas eu tive um medinho da minha mãe. Eu demorei pra me assumir, eu acho que eu me assumi com 20 anos, mais ou menos, que foi quando eu descobri. Mas também, ninguém gostava de mim, eu não ficava com homem nem com mulher. Aí, tava passando aquela novela das sapatões, da fotógrafa…
[Pérola] Eu lembro da delegada e da fotógrafa.
[Jade] Aí, um tempo depois, ela chegou pra mim, na cozinha, e falou assim: “Posso te fazer uma pergunta? Todo mundo agora da sua época é bi, sapatão… você é o que?” Eu falei: “Me deixa quieta!”. Aí, ela falou assim: “Ué, não tem problema, se você for eu vou te amar.” E foi antes de eu me assumir. Então, a mãe já suspeitava de alguma coisa, quando eu falei, não foi uma surpresa.
[Pérola] Durante minha infância, a minha mãe dizia: “Eu prefiro que você chegue aqui com 3 homens, mas não chegue com uma mulher!” Coisas nesse nível… Então, isso sempre me afastou da possibilidade. Só que, ao mesmo tempo, eu sentia coisas desde nova. O meu primeiro beijo foi com uma menina debaixo da mesa da sala da minha mãe e ela me pegou no flagra. Quando eu comecei a entrar na adolescência, sair mais, uma menina me beijou numa festa e eu só deixei, não resisti. Nós nos beijamos e eu pensei: “Tem alguma coisa aqui”, mas deixei guardado, porque eu tava com medo. Eu ficava sempre me afastando e, aí, me relacionei com vários homens, até que cheguei, no Rio e falei assim: “Ah, minha mãe nem tá aqui, meu pai é mó de boa em relação a isso. Vou viver tudo que tiver para viver!”. E quando eu comecei a ficar com a Jade, eu cheguei em casa e falei pro meu pai: “Ó, pai, eu tô ficando com uma menina, ela é maravilhosa. E ele: “Isso vai dar certo? Tua mãe já sabe disso?” Eles são separados. E eu falei: “Ela vai saber, mas o que você acha?” e ele falou: “Não sei, vamos vendo…” Aí, eu deixei ele preparado para o que estava por vir e eu comecei a namorar com a Jade e contei pra ele que estávamos namorando. Não tinha contado pra minha mãe, ainda, que a gente estava ficando, muito por esse receio de qual seria a reação dela. E aí, a minha irmã contou. E eu fui tirada do armário. (risos)
[Jade] Chutada do armário, cara! Isso é muito ruim, né?
[Pérola] Eu acho que minha irmã contou já preparando também, porque quando eu fui falar, de fato, com a minha mãe, ela reagiu de uma forma que eu não esperava. Tudo aquilo que eu idealizei dela reagindo de uma forma muito negativa, foi completamente oposto: “Minha filha, eu gosto de pessoas que façam vocês felizes. O importante para mim é que vocês estejam muito felizes, então seja feliz.”
[Jade] Ela me mandou mensagem no Instagram falando “Bem-vinda à família”.
[Pérola] Pois é, eu fiquei: “Ué, gente, essa é a minha mãe?” (risos)
[Jade] Não só a mãe dela, como a irmã dela também mandou mensagem e eu pensei: “Eu tô casada!” (risos)
[Pérola] Todo mundo muito intenso.
[Julia] Mãe pode ter essa ideia mas, na hora que acontece, ela vai sentir o amor.
[Pérola] E acho que a minha mãe tem me visto feliz como ela nunca me viu antes, porque agora que eu me sinto realizada na minha vida amorosa, eu lido melhor com todas as outras coisas e isso é bom para todo mundo. Inclusive, minha relação com minha mãe melhorou, porque, agora, é como se eu não estivesse mais escondendo quem eu sou. Olha a potência que pode surgir a partir disso.
[Jade] E a relação que eu tenho com meu sogro é ótima.
[Pérola] Ele te chama de bonequinha. (risos)
[Jade] É isso. A gente fala com a família inteira. A gente vai no rolê da família dela e da minha família também.
Pra vocês, qual é a especificidade de um amor sapatão?
[Pérola] Eu acho que o autocuidado. Eu tenho me dado conta, cada vez mais, que eu vivo muito na base da política, então é difícil não politizar algumas coisas. Então, como escolha política, escolher cuidar dela da forma que eu acho que ela merece ser cuidada, faz com que eu olhe diferente pra mim. E isso me coloca num lugar de evolução pessoal, num estado de espírito que me conforta de uma tal forma que eu falo que, finalmente, eu me amo.
[Jade] Eu não vou conseguir responder melhor (risos). Olha, eu acho que o tipo de conversa que eu tenho com ela eu não conseguiria ter com um outro cara. Ela me entende 100% e, ainda mais, sendo uma mulher negra, também. Eu me sinto totalmente livre pra ser eu, com todas as minhas inseguranças e defeitos. Então, se sentir à vontade com alguém, assim como se sentir à vontade nos ambientes, deixa tudo mais fácil. O relacionamento fica muito mais fácil. A gente tem muita abertura para conversar sobre tudo, porque a gente sabe que no fundo a gente vai se entender.
Há quantos anos vocês estão juntas?
[Jade e Pérola] Um ano e meio.
Vocês moram juntas há quanto tempo?
[Jade] Vixe, vamos dizer que com um ano e três meses. Mas o Martin (o gato), veio depois.
Pérola, como foi para você essa vinda para o Rio em relação à expectativa e realidade? O Rio chama muito quem quer fazer teatro e cinema, como é que foi para você essa chegada e adaptação?
[Pérola] Foi babado! (risos) Foi traumático. No início eu tive muita dificuldade, porque eu não conseguia me comunicar com as pessoas. Quer dizer, eu tava me comunicando do meu jeito, com o meu sotaque, mas eu era sempre colocado num lugar “exótico”, vou usar essa palavra, mas eu não gosto dela. Era como se eu fosse um bichinho que estava ali sendo investigado pelas pessoas. Então, isso me colocou num lugar de solidão, porque eu não conseguia conversar. Eu fui internalizando muitas coisas.
[Jade] Sempre tinha alguém para rir de você e te imitar…
[Pérola] Sempre fazendo chacota com o jeito que eu falo, me interrompendo ou, às vezes, eu terminava de falar uma frase e a pessoa pedia pra eu repetir. Eu ficava: “Ué, mas ficou alguma coisa em aberto, não deu para entender o que eu falei?” Isso me cansou um pouco e foi me colocando numa depressão. Por mais que Rio e São Paulo sejam esses lugares vendidos pra gente como o antro das possibilidades e oportunidades, eu também já sabia que haveriam algumas questões muito preconceituosas nesse sentido, geograficamente falando. E aí tentei lidar com isso, muito sozinha. Sobre as oportunidades, também mudei muito meu conceito depois que eu cheguei, porque aí eu comecei a problematizar ainda mais. Perguntar o porquê de não ter oportunidades, lá. Estar aqui, hoje, é tentar ir atrás desse objetivo muito concreto pelo qual eu vim. Mas, ao mesmo tempo, eu não quero ficar presa aqui. Eu quero ter a possibilidade de ir para o Nordeste, voltar pra casa e poder curtir aquele lugar. Porque lá eu me sinto muito viva. Então, eu uso o Rio de Janeiro, como uma escada para alçar vôo pra onde eu escolher ficar, na verdade.