Darla e Mirella

Darla Muniz e

Mirella Prado

A imagem mostra a fachada de um sobrado antigo com detalhes arquitetônicos ornamentados. O prédio é pintado em tons de lilás e tem detalhes decorativos com flores e folhas em azul claro e amarelo. No centro da fachada, acima das janelas, há uma escultura de uma cabeça com cabelos longos, em tons de amarelo. Há duas sacadas ao meio e uma janela em cada ponta. Em uma das fachadas, duas mulheres estão se beijando. Uma delas tem cabelo loiro e veste roupa clara e a outra tem cabelo escuro e veste roupa preta. Elas estão de pé na varanda, que tem uma grade de ferro trabalhada. A outra fachada e as duas janelas estão abertas, mas não há ninguém nelas. Dentro do prédio, é possível ver as paredes brancas e lâmpadas acesas.
A imagem mostra a fachada de um prédio antigo com detalhes arquitetônicos ornamentados. O prédio é pintado em tons de lilás e tem detalhes em azul claro e creme. No centro da fachada, acima das janelas, há uma escultura de uma cabeça feminina com cabelos longos e amarelos. Abaixo, há duas sacadas abertas, cada uma com uma mulher sentada no parapeito. A mulher à esquerda tem cabelos loiros e está vestindo um vestido bege, enquanto a mulher à direita tem cabelos longos e escuros e está vestindo preto. Ambas estão estendendo os braços uma em direção à outra, como se estivessem prestes a se tocar. Abaixo das janelas, há uma varanda com grades de ferro trabalhado. A fachada também possui detalhes florais e linhas curvas, típicos de um estilo arquitetônico mais antigo.
A imagem mostra duas mulheres se beijando em frente a uma porta de madeira de cor roxa. A mulher à esquerda tem cabelo loiro e está usando um vestido bege justo e sapatos de salto alto rosa. Ela está encostada na porta. A mulher à direita tem cabelo preto e está usando um blazer preto, short curto também preto e tênis colorido. Ela está de pé, inclinada em direção à outra mulher. A porta e a parede ao redor estão cobertas de grafites e adesivos. O chão é de pedras portuguesas.
A imagem mostra duas mulheres posando em frente a uma parede amarela com grafites. No topo da imagem, há uma placa azul com letras brancas que diz "Praça Luana Muniz (Rainha da Lapa)". A mulher à esquerda tem cabelo preto e veste blazer preto, short curto também preto. A mulher à direita tem cabelo loiro comprido e veste um vestido bege. Ambas estão olhando para a câmera e têm expressões sérias, com os braços enlaçados uma na cintura da outra. A parede ao fundo tem algumas marcas de desgaste e grafites em preto.
A imagem mostra duas mulheres brancas se abraçando de forma carinhosa. A pessoa à direita tem cabelo loiro e longo, unhas longas e laranjas e tatuagens visíveis no braço e está sorrindo com os olhos fechados, transmitindo uma sensação de conforto e felicidade. A pessoa à esquerda tem cabelo castanho escuro e também está com os olhos fechados, com uma expressão serena. Ambas estão próximas a uma janela, e ao fundo, do lado de fora, é possível ver a fachada de um prédio amarelo com janelas grandes.
A imagem mostra duas mulheres se beijando. Ambas têm cabelos longos, uma com cabelo escuro e a outra com cabelo loiro. Elas estão de olhos fechados e parecem estar em um momento íntimo e carinhoso. A mulher loira tem unhas longas e pintadas de laranja e está segurando o rosto da outra com as mãos. A cena parece estar acontecendo em um ambiente interno, próximo a uma janela.

[Darla] Eu sou Darla Muniz, uma travesti de 25 anos, ariana, nascida no Flamengo. Hoje, eu sou presidente da Associação das Travestis Prostitutas e apresentadora do podcast “Tô de cara com o Casarão de Luana Muniz”.

[Mirella] Eu me chamo Mirella Prado, sou pisciana, tenho 27 anos. Sou nascida em Ubatuba, sou caiçara, e casada com Darla Muniz e fundadora do projeto “Sementes de Luana Muniz”.

E agora vocês moram na Praça Tiradentes, né? E trabalham aqui na Lapa?

[Darla] Atualmente, nós moramos na Praça Tiradentes, levando o mecanismo individual de um relacionamento, mas também com a responsabilidade do cotidiano, que é a Associação, dentro das demandas que são estabelecidas, abrigadas e encaminhadas daqui. Para além disso, como presidente da Associação, eu estou todos os dias no Casarão, dando seguimento a essas demandas que chegam e a Mirella fica mais na administração das páginas dos projetos, do podcast, entre outros.

[Karol] A gente começa com uma pergunta clássica: Como vocês se conheceram?

[Mirella] A gente se conheceu aqui, no Casarão, em 2016, quando eu fui recebida pela Darla e pela Luana. A partir daí, a gente iniciou um relacionamento que, até a morte da Luana, durou mais ou menos um ano. Após a morte da Luana, nosso relacionamento se fortaleceu, porque a gente teve que se juntar para se colocar à frente do Casarão. Eu como companheira e apoiando Darla Muniz.

[Darla] Como continuidade do projeto social existente há 45 anos no Rio de Janeiro. Posso dizer que é o maior projeto social, existente hoje, para travestis prostitutas que ainda estão na ponta e não sabem realmente o que são, o que querem e aonde vão parar. E para além disso, Mirella Prado, que é minha companheira há 8 anos, teve essa mega ideia da gente fazer a “Fundação Sementes de Luana Muniz” , inspiradas no legado social dela.

[Mirella] A gente se inspirou no trabalho que já tínhamos assistido a Luana fazer aqui, no Casarão. E que, para além do público LGBT, eu via muito a Luana ajudando outras pessoas, como moradores de rua, mães solos… E aí, a gente se inspirou no legado da nossa madrinha.

[Darla] Vai além de um projeto social voltado para a categoria. Nesse paralelo, eu digo que a gente não atende só as travestis, que ainda dependem da prostituição em si, mas a sociedade civil, a sociedade heteronormativa, porque a gente sabe o quanto é complexa a sobrevivência do cidadão pobre hoje no Brasil. Hoje em dia, a gente tem um projeto dentro da Associação das Travestis Prostitutas, que é a distribuição de cestas básicas, não só para as travestis que ainda dependem da prostituição, mas para todos os que precisam. Só pode falar da fome quem sentiu a fome. Então, a gente resolveu fazer esse projeto para que a gente desse segmento a esta pauta complexa que é a fome, que abrange a população: héteros, cis, travestis, não bináries, lésbicas, gays. E a gente resolveu não ser seletiva, como muitos movimentos são, e abranger todas as categorias que necessitam desses atendimentos.

Podem contar um pouquinho pra gente quem foi Luana Muniz e o que todo esse legado representa?

[Mirella] Como é que a gente pode começar a falar da Luana? A Luana era uma pessoa à frente do seu tempo. A gente foi entender quem era a Luana, realmente, quando a Darla sofreu uma tentativa de homicídio em 2018 e não tivemos apoio do movimento criado por pessoas LGBTQIAPN+ como nós. Ali, a gente teve que olhar para a história dela pra saber por onde a gente iria caminhar, e adquirir forças, procurar pessoas aliadas à Luana, pra gente, hoje, estar aqui. A gente conseguiu prender a pessoa que fez isso com a Darla, através da história de Luana Muniz.

E o Casarão já funcionava como um lugar de acolhimento com a Luana?

[Darla] O Casarão, como projeto social, é uma rede muito ampla e existe há 45 anos. E começou quando Luana abriu o Casarão pela primeira vez para abrigar, e assim começou o projeto de acolhimento para as travestis que ainda necessitavam e não tinham para onde ir.

[Mirella] Ela também criou esse projeto para se manter, aqui, dentro desse espaço. A Luana abrigou a primeira travesti aqui, que era uma querida dela, a Carla (mostram a foto no mural). E ali, elas iniciaram uma luta com os supostos herdeiros desse imóvel. Então, desde 1979, a gente já está aqui. Não dá para contar tudo, né? É um processo muito grande, uma escola.

[Julia] E é um lugar de resistência também.

[Darla] Sim, super lugar de resistência. E pela conotação, né? Quando as pessoas falam sobre travestis prostitutas dentro desse movimento, o Casarão é invisibilizado, porque não querem dar visibilidade a algo que realmente existe, que são as travestis prostitutas. Acham que elas não precisam de respaldo, mas elas necessitam. Então, a militância e o ativismo de Luana Muniz começou, desde 1979, lutando por políticas públicas para a categoria das travestis, que estão na ponta. As políticas públicas não chegam até nós. Então, Luana foi uma ativista muito ríspida dentro desse movimento para trazer as políticas públicas para essas categorias que ainda necessitam e não são visibilizadas. Hoje, a grande maioria das travestis ainda estão nos pontos de prostituição, no estado do Rio de Janeiro e em todo o Brasil.

[Julia] E a questão da prostituição não ser legal, piora as condições de trabalho, já que é uma situação de vulnerabilidade muito grande, né?

[Mirella] A prostituição é um trabalho, não é crime. O crime é a exploração da prostituição. Só que eu ouvi de uma ativista, aqui do Rio de Janeiro, que as grandes cafetinas e exploradoras sexuais estão, hoje, em outros patamares, então, elas estão explorando de forma diferente os corpos travestis. Agora, elas não estão mais na esquina pedindo dinheiro, mas elas estão no Estado, no governo, na política e estão explorando do mesmo jeito.

[Darla] Eu gosto de dizer que, hoje em dia, elas não são mais consideradas cafetinas, mas sim, lutadoras pelas pautas de políticas públicas e direitos humanos para a comunidade LGBTQIAPN+.

[Mirella] O que não deixa de ser uma exploração de corpos trans e travestis, se analisar bem.

[Darla] Porque esses corpos são usados, por uma política pública que existe há 35 anos, que é um movimento social que diz lutar pela comodidade da diversidade. Há luta, mas essas travestis não saem da ponta. Então não existe movimento que respalde essas travestis ou que tire elas da prostituição. Então, uma coisa é falar de empregabilidade e falar que a travesti tem um emprego. Mas, outra coisa, é aquela travesti permanecer no emprego. É totalmente diferente e muito complexo.

[Darla] Porque o emprego a gente sabe que tem, mas a permanência… É aí que tá.

[Mirella] Mesmo a gente tendo passado por tudo isso desde a morte da Luana, a gente teve portas fechadas. Se não fosse a nossa escola, que era a Luana Muniz, a gente não tinha conseguido nada. Tiveram pessoas que eram de fora do movimento e que nos ofereceram ajuda. Então, acredito que movimento social é o seu corpo.

[Darla] Você mesma é o seu próprio movimento. É você própria, que faz pelas pessoas.

[Julia] E dentro da sigla LGBTQIAPN+ sabemos que os corpos de pessoas racializadas e de pessoas trans e travestis são os mais vulneráveis.

[Darla] E são os corpos mais usados dentro dessa política pública, que eles dizem que existe, mas não é existente.

[Mirella] Porém, a travesti é muito audaciosa, né? Muito esperta. Hoje em dia, a pauta que estão usando muito é o racismo. Com a travesti prostituta, ninguém nem quer mais mexer. Agora, se for uma travesti preta, aí, é importante para eles. Já uma travesti branca, lésbica, não dá dinheiro.

[Darla] Eles são seletivos dentro desse movimento que dizem fazer por toda uma categoria, por toda uma classe. Então, se existe seletividade, não existe movimento. Para que existir movimento, se não é válido para as pessoas que realmente necessitam?

[Mirella] A gente nunca sai da estaca zero. Agora, imagina: duas travestis novas, que se conhecem e se apaixonam. A gente tem que separar a nossa vida pessoal, o nosso relacionamento, do nosso trabalho, porque são coisas totalmente diferentes. Teve uma tentativa de homicídio e, durante um tempo, a gente misturou tudo. Hoje em dia, a gente consegue ter a nossa relação dentro da nossa casa e ajudar as meninas que vão até o Casarão buscando ajuda. E a gente tá aprendendo a lidar com tudo isso, e separar as coisas. E, também, saber o que é o movimento social, que é importante, sim, porque tem pessoas que são honestas, mas eu não posso achar que um semelhante a mim vai ter empatia pela minha situação.

[Karol] Aproveitando que você falou sobre isso, como é esse equilíbrio entre a relação de trabalho e a relação pessoal de vocês?

[Mirella] Psicóloga. (risos) A nossa psicóloga falou pra gente que a gente tinha que separar as coisas.

[Darla] Na verdade, teve um tempo da nossa vida, em que nós moramos no Casarão. Quando a gente começou a fazer o acompanhamento psicológico, automaticamente a psicóloga deu a narrativa de que não existe trabalhar e morar no mesmo ambiente. Então, a gente fez essa distinção e aprendemos a ter responsabilidade com o nosso relacionamento. A vida pessoal não tem nada a ver com a vida profissional.

[Mirella] A partir dali, a gente conseguiu ter um relacionamento muito mais saudável, leve, gostoso, porque, apesar de todas as dificuldades, quando a gente tá junta em casa, é o nosso momento de estar juntas, de curtir, de fazer a nossa comida, de rir, de brigar como um casal, de ser a gente. Se não fosse a terapia, a gente nunca iria conseguir separar essas duas coisas.
E olha que bacana, a partir desse momento em que eu precisei da ajuda psicológica, eu percebi que a terapia é algo que muda a vida das pessoas. E aí, a gente trouxe a terapia para dentro do Casarão. Com a psicóloga que atendia a gente, criamos um projeto onde as psicólogas do Estado atendem as meninas dentro do quarto delas.

[Darla] Hoje em dia, nós temos um projeto de psicologia com o ‘Rio Sem LGBTfobia’, que já vai completar dois anos e meio no Casarão. Eu estabeleci para os superintendentes de direitos humanos do ‘Rio Sem LGBTfobia’ que não tinha como a gente jogar toda a responsabilidade para essas meninas, que estão dentro do processo traumático. Era muito mais importante a gente trazer a psicologia até elas, do que elas irem até a psicologia. E, a partir do momento em que a psicologia está dentro do Casarão, as meninas se sentem à vontade para falar dos traumas que elas viveram. Para você ter uma superação, você tem que entender o seu trauma. Se não entende o trauma, não supera. Por isso, esse projeto social é de extrema importância para essas meninas entenderem os traumas e superarem, porque não tem como a gente chegar à evolução sem primeiro superar um trauma.

[Mirella] A gente, por já ter passado por isso, consegue ter empatia de que uma menina que vive a prostituição de noite, não vai conseguir ir até a central do Brasil para ter um atendimento psicológico. E, talvez, aquele primeiro atendimento psicológico mude a vida dela toda.

[Darla] Primeiro, ela sente uma represália de não se sentir confortável para falar o que realmente sente. Então, com esse acolhimento, ela vai se sentindo mais à vontade de ir expressando tudo que a machuca. A psicologia é o ponto número um para a evolução da travesti prostituta.

[Mirella] E preconceito é preconceito. As pessoas têm preconceito com travesti, mas as pessoas também têm preconceito com psicólogo (risos). Ou preconceito com qualquer outra coisa. Às vezes, a travesti não quer ir no psicólogo, porque ela não quer aceitar que precisa de um. Existe preconceito em todos os lugares.

[Julia] O quarto delas é o lugar onde se sentem mais à vontade. E às vezes, só de sair na rua,  ela pode sofrer uma transfobia.

[Mirella] Eu parei com o atendimento psicológico e eu chegava aqui muito agitada. E eu percebi que as meninas estavam muito mais calmas. Elas conseguiam me ajudar. Olha só que legal, né? Quem estava com o atendimento em dia conseguia me ajudar.

[Darla] A responsabilidade que é a Associação dentro do cotidiano, a quantidade de demanda, às vezes, deixa a gente perturbada e perdida. Então, quando a gente chega aqui desestabilizada e elas já estão dentro da rotina da psicologia, do entendimento de separar as coisas, elas nos colocam estabilizadas.

[Mirella] São mais de 200 pessoas que passaram por esse Casarão e não existe alguém passar pela sua vida e não te deixar alguma coisa. Não é fácil, né?

[Darla] Tem dias que eu chego muito leve, mas tem dias que eu chego e já tem as pressões das demandas: cesta básica, médico, jurídico, requalificação profissional, cada uma tem sua demanda.

[Mirella] E, da mesma forma que eu falo que preconceito é preconceito, problemas são problemas. O meu problema não é maior do que o seu. Às vezes, a menina tá com um conflito que eu acho banal, mas, pra ela, é um problema muito grande.

[Darla] Quando o problema é pessoal, a gente não pode saber como ela está se sentindo, porque a gente não vai se sentir igual a ela. Às vezes, o problema dela tá machucando muito ela, mas para a gente é uma coisa muito rasa, porque a gente já passou por aquilo e já sabe como resolver. Então você consegue ajudar.

Quantas meninas moram aqui hoje?

[Darla] Hoje, no Casarão, moram 14 meninas e são 287 cadastradas, que dependem dessa instituição. Um desses projetos sociais que nós conseguimos com o CEDS RIO (Coordenadoria da Diversidade Sexual do Estado do Rio de Janeiro), é o projeto com o Circo Voador.  A gente procurou a CEDS Rio, que é coordenada por Carlos Tufvesson. Uma vez por mês, o Circo Voador nos doa entre meia tonelada de alimento a 300 quilos de alimento, que é a demanda de alimento que nós recebemos das meninas que estão em extrema vulnerabilidade e passando necessidade. Desse alimento recebido, nós fazemos o processo de triagem das validades e montamos a cesta básica para a distribuição para essa classe inteira, não só travestis.

[Mirella] São necessidades básicas do nosso dia a dia: alimentação, camisinhas, atendimento psicológico e jurídico. Todo mundo precisa de atendimento psicológico, todo mundo precisa comer todos os dias. A gente já passou por isso na pele, então a gente come e quer saber se as meninas estão comendo também.

[Darla] A sociedade civil e os movimentos dos órgãos governamentais do estado do Rio de Janeiro pensam que tem como a gente viver só na prostituição, mas é muito para além disso. A Associação das Travestis Prostitutas, abrange uma demanda de requalificação civil, distribuição de cesta básica, preservativos, atendimento médico, integração à rede de educação, atendimento jurídico e diversas outras demandas que estão dentro desse projeto social.

Qual a importância que o trabalho da Associação e o Casarão têm dentro da comunidade LGBTQIAPN+?

[Darla] Eu gosto sempre de falar que o Casarão é o berço da travesti, porque ele existe há 45 anos, antes mesmo de existir o projeto social ou o movimento. Mas, existe um preconceito com esse Casarão, porque ele é voltado para as prostitutas que ainda estão na ponta. Então, o Casarão, hoje em dia, não tem tanta visibilidade.

[Mirella] E a gente sabe que o governo não quer resolver o problema de ninguém, eles só maquiam. Aqui, se trabalha com a realidade. Tudo que a gente apresenta de solução, às vezes, eles ignoram. Então, a importância do Casarão é resistir e continuar trabalhando para que esse projeto ajude muita gente. O que seria das travestis vulneráveis se não fosse o Casarão aqui na Lapa, no centro Rio de Janeiro?

[Darla] O Casarão é uma ONG, é um projeto social que vai muito além. Hoje, por exemplo, nós temos travestis no Casarão que são da cidade de Natal. Acabou de chegar uma menina de Pernambuco. Na cidade delas, as políticas públicas que dizem ser voltadas para essa categoria, não tem respaldo algum, então elas enxergam uma solução e uma luz através do Casarão. Elas saem do estado delas tendo a confiança nesse espaço. E aqui elas conseguem um norte. Coisas básicas se tornam muito grandes. Como a Babi, por exemplo, que acabou de fazer a requalificação civil dela. Para ela, foi uma coisa muito grandiosa, porque na cidade dela, ela não tinha esse respaldo. Aqui, ela teve um caminho, dentro do gênero e da identificação que ela sente, como uma mulher trans.

[Mirella] Quando se é de outro estado, já se chega no Rio de Janeiro traumatizada, porque, na maioria das vezes, elas já foram expulsas da sua casa. Então, aqui é um lugar onde se pode colocar o pé no chão, acreditar em si mesma, acreditar que pode ser e fazer da sua vida o que quiser e ser uma pessoa honesta, de caráter. Foi isso que a Luana nos ensinou, que nunca vai valer a pena ser uma pessoa ruim. Então, aqui, a gente aprende a acertar para ajudar os nossos familiares e os nossos amigos. E pra fazer a diferença como travesti. 

[Darla] Porque travesti não é bagunça! (risos) E eu gosto sempre de dizer que a travesti é uma fábrica de sonhos. Pra lembrar que a travesti pode sonhar e pode ser o que ela quiser, basta ela querer, mas dentro desse processo de querer, existe o trauma que não te deixa evoluir.
Uma travesti nova, de 19 anos já não está sendo bem vista pela sociedade, imagina uma travesti com 40 anos, sem dinheiro e sem nada. Não se pode pensar a curto prazo.

[Mirella] A prostituição é muito cruel. Com 27 ou 28 anos, a travesti já não é mais nova.

[Darla] A prostituição é seletiva. É o que eu digo sempre para elas: “hoje vocês têm 19 anos, mas amanhã vocês vão ter 30”. Há pouco tempo, enterramos uma travesti de 50 anos, que teve um infarto. A família não quis saber dela, porque o preconceito é existente em todas as esferas. Então, depois de 23 dias dessa travesti morta, a Associação fez a requalificação dela, depois do óbito, para poder enterrar ela com dignidade. Não posso enterrar essa travesti como “fulano de tal”. São esses movimentos que dizem fazer pela nossa comunidade, mas que não chegam até nós.

[Mirella] E a travesti tem que ser sempre muito melhor, né? A mãe Luana falava: “travesti já nasce errada”. Então, pra sua família, você tem que ser muito melhor pra ser aceita. A gente carrega esse fardo.

[Karol] Falando em família, como foi, pra vocês, se apresentarem como um casal para as famílias?

[Mirella] A minha família ama Darla! (risos) Eles são uma segunda família, né?

[Darla] Eles me abraçaram de uma forma que não tem explicação.

[Mirella] E a nossa família é muito diferente. Eu acredito que ela foi abraçada na minha família e eu também ensinei muito para a família dela sobre o significado de ser família. Hoje em dia, o meu convívio com os meus cunhados, com a minha sogra é perfeito. E a gente sempre teve apoio, a minha mãe ajudou a gente. Nós temos uma casa lá em Ubatuba, a minha mãe deu um terreno pra gente construir.

[Darla] Nós estamos construindo uma casa pensando a longo prazo. A única coisa que a gente não pode negar é que a idade chega.

[Mirella] E a travesti é muito imediatista, nem pensa no amanhã, só no agora. E, muitas vezes, a gente deixa de pensar a longo prazo, no que quer para o futuro, porque a gente pensa que não vai viver. A partir do Casarão e do meu contato com a Luana Muniz, eu tive a oportunidade de começar a pensar em envelhecer travesti. Porque a Luana era uma travesti de 69 anos, então, eu já conseguia me ver uma travesti mais velha. Eu comecei a pensar no meu futuro a partir da Luana e o que eu quero quando eu chegar lá, porque eu vou chegar lá.

Como vocês se imaginam no futuro?

[Darla] Quietinha! (risos) Eu me imagino, no futuro rica, quietinha, porque eu gosto muito de dormir. Se perguntassem pra mim o que eu queria ser, eu queria ser um cachorro (risos), pra falarem “vai deitar!” e eu já deitar de imediato. (risos)

[Mirella] Eu imagino o futuro da gente em paz, tudo o que a gente quer, é paz. Quando se imagina a velhice, imagina-se dentro de casa, no conforto, com uma certa estabilidade financeira, o que para a travesti é um pouco mais difícil, então a gente tem que se adiantar.

[Julia] Socialmente, ela tem que fazer muita força pra ser quem ela é, porque o mundo todo tá dizendo o contrário.

[Mirella] O mundo diz: “Você não pode, você não chega, você não vai viver, você não vai envelhecer.” É isso que a gente aprende. Mas a gente pode, sim, chegar para além dos 30 anos e passar das estatísticas, é só aprender quem é você dentro dessa sociedade. Eu sou uma travesti, eu não sou uma mulher.

[Darla] Eu costumo dizer que essas estatísticas são muito errôneas. Porque eu acho que a travesti só não chega aos 35 anos por ela não ter responsabilidade nem discernimento do que realmente quer. Porque a vida tem dois fatores: o certo e o errado, e o discernimento mostra o que é. Então, se você caminha por um caminho extremamente errado, você sabe que não vai ter um futuro. Quando você leva a sua vida, dentro da sociedade, com responsabilidade do que é certo, do que você pode ou não fazer, você se estimula para muito além do que você está estatisticamente prevista a viver. As estatísticas dizem que a travesti só pode viver até 35 anos, mas com responsabilidade e foco, pode viver muito para além, porque Luana Muniz é uma travesti que nasceu em 22/10/1949 e faleceu aos 69 anos. Ela ultrapassou a estatística dos 35 anos, que eles dizem que a gente não passa, mas a grande maioria passa.

[Mirella] Na verdade, eles não sabem o que mata as travestis e dizem que as estatísticas mostram que a travesti não passa dos 30. Mas o que vem matando as travestis, eles realmente não sabem.

[Julia] Eles sabem, mas preferiam não saber e não querem dizer.

[Mirella] Porque por ignorância da própria travesti, ela morre numa esquina, entendeu? Então, é difícil achar que somente o preconceito está matando a travesti. A ignorância também está matando.

[Darla] E uma coisa muito forte que eu falava: só não evoluímos porque não querem ensinar o que já aprenderam. O que você já aprendeu é guardado pra si, não se passa para o próximo. Os tempos vão se atualizando, mas a gente continua na mesma. A gente tem que mostrar para as meninas novas, que agora tem 16, 17 ou 18 anos, qual é o passo a passo para se ter uma vida digna, com responsabilidade e um futuro a longo prazo.

[Mirella] E você quer ser feliz ou não? Eu escolho ser feliz. Eu não vou abrir mão da minha felicidade por nada. Eu, enquanto travesti, aprendi que eu tinha que me relacionar com homens até conhecer Darla e, a partir daí, eu começo a minha evolução. Eu caí no mundo já meio que programada de como eu vou viver nesse mundo. A escola, no Brasil, é praticamente um presídio. Então, que travesti vai viver dentro de uma escola? E aprender a viver dentro da sociedade é a chave para você chegar a uma certa idade.

[Darla] A Mirella chegou aqui em 2016. Eu me recordo, nitidamente, eu estava descendo para ir pra rua trabalhar. Luana estava sentada na escada e, quando eu estava descendo, ela falou assim: “Darla, minha filha, vai pra onde?” Eu respondi: “tô indo pra rua, madrinha.” E ela: “não, espera aqui que vão chegar duas meninas.” Meia hora depois, chega a Mirella e a amiga dela. E foi uma coisa de primeira vista.

[Mirella] Talvez eu nunca fosse me encontrar como uma travesti se não tivesse conhecido Luana, porque eu tive uma mãe hétera. Como eu ia saber o que é ser travesti, se eu tinha uma mãe cis? A partir do momento que eu encontro a Luana, eu tenho uma mãe travesti que cuida, que me ensina, me abre espaço. Aqui, eu consegui documento, coloquei meus seios. Eu falo que eu tive uma segunda mãe. Eu me encontrei com meu próprio eu quando eu vi Luana Muniz. Não foi um laço sanguíneo, mas o respeito por ela ser uma pessoa mais velha. A minha mãe é uma mulher mais velha, então eu já tenho esse modelo. Mas, além disso, eu tive o acolhimento dela, ela cuidou de mim, de eu estar doente aqui e ela custear remédio. Tudo isso, a Luana fez por mim, então hoje, é isso que eu quero ser para as pessoas. Quando eu encontro outra travesti, eu quero passar esse lado que a Luana me mostrou, que dá pra ser travesti e ser feliz. E ela era uma puta artista.

[Darla] Além disso, não só ser travesti e ser feliz, como ter empatia pelo próximo.

[Mirella] Se prega muito ódio. Preconceito está em todos os lugares, a gente tem que saber lidar com isso.

[Darla] Eles vão ter que inventar um outro modo de preconceito. Com quem não gosta de café, eu também tenho preconceito. (risos) É verdade. Então, todo mundo é preconceituoso com alguma coisa.

[Mirella] A Luana falava também que ser bom ou mau é escolha. Uma coisa que eu não tinha discernimento, porque vinha de família religiosa, então achava que o mal ou bem acontecesse por energias de outro lugar. Não, você faz uma escolha, você quer ser uma pessoa boa ou você quer ser uma pessoa ruim. Ela deixava isso muito claro. E eu escolhi ser boa pra quem é bom comigo e melhor ainda pra quem é ruim! (risos)

[Darla] Ela falava todas as línguas, a língua do povo. Ela não falava a língua do politicamente correto, porque a travesti do politicamente correto vai ficar focada na ideia que outros querem passar.  É o que eu sempre falo: quando vocês virem travesti na platéia, usem os termos adequados, tenham um pouco de respeito. O politicamente correto, elas não vão entender.

[Mirella] Como entender se a linguagem acadêmica não chega até a gente? A gente não fala.

[Darla] Vinte por cento das travestis não sabem ler e nem escrever os seus nomes. Como é que você vai querer falar no politicamente correto?

[Mirella] Isso não é culpa da travesti, não. É da escola e do sistema.

[Darla] Foi o que eu falei, a empregabilidade realmente não existe, porque manter aquela travesti dentro do emprego é totalmente diferente.

[Mirella] A gente tem, hoje em dia, empregos para travestis e LGBTQIAPN+, mas quem vai manter elas ali dentro, lidando com aquele preconceito?

[Darla] Falando sobre empregabilidade e academicismo, a Mariana é uma travesti técnica de enfermagem formada, e cadê o emprego dessa travesti?

[Mirella] Chegam, até nós, travestis formadas como contadora, advogada, que fala mais de 4 línguas, mas não têm emprego e não conseguem se manter dentro de uma vaga de emprego.

[Darla] Porque as empresas não dão essa permanência para elas.

[Mirella] É o que você falou do trauma. A pessoa não sabe lidar, então, no primeiro encontro com aquele trauma, ela vai embora, ela desiste.

[Darla] Precisa se sentir confortável, acolhida. Igual nós nos sentimos com vocês, acolhidas. Porque só sabe o que é preconceito quem vive o preconceito e sabe que uma forma, um gesto e um posicionamento é uma forma de preconceito.

[Mirella] É muito mais fácil ara vocês entenderem a gente e a gente entender vocês, porque a gente é do vale! (risos) A gente se entende, agora se colocar minha mãe aqui nessa sala, a gente também tem que entender a ignorância dela. Pra viver feliz. Porque só tem essa vida pra viver, não dá pra ficar perdendo tempo com bobagem. Prefiro amar, hoje, os meus pais, do que criar um certo rancor deles. Decidi esquecer tudo.

Como é a relação de vocês com o entorno, tanto aqui na Lapa quanto na Praça Tiradentes?

[Mirella] A travesti sempre tem que impor mais respeito, né? Mas ela tem que se respeitar primeiro. E aí, quando tiver uma brincadeirinha, você tem que saber lidar com aquilo. Não é só meter a mão na cara, isso é muito fácil. Mas saber que, talvez, um olhar imponha muito respeito e postura.

Vocês acham que teve uma grande mudança, hoje em dia, e que a travesti é mais respeitada, já teve algum avanço?

[Darla] A grande maioria das travestis ainda não sabe o que é, realmente, o respeito, porque elas não se dão o respeito. Hoje em dia, a minoria tem um posicionamento como o meu eu e da Mirella, que impõe um respeito. A gente não quer ser julgada pela matéria que a gente apresenta, mas, sim, por como, realmente, a gente é. Então, hoje em dia, nós somos reconhecidas tanto na Praça Tiradentes, onde a gente mora, quanto na Lapa, que é o lugar onde eu nasci, fui criada e minha família habita há 80 anos. Nós conseguimos impor o respeito. Não é porque a gente é travesti que a gente é sinônimo de chacota, marginal, delinquente. A travesti vem trazendo toda uma esfera que é a marginalidade, a dependência química, o uso do sexo. Então, hoje em dia, a gente consegue impor o respeito através do nosso trabalho, do que a gente acredita e do nosso posicionamento. Eu também gosto de dizer que tudo entre a sociedade civil é a abordagem, independente do gênero que você seja. Eu não posso, por exemplo, chegar em alguém com uma abordagem muito bruta, porque vai gerar uma outra reação. Se você me abordar com ignorância, vou responder com ignorância. Mas se você me abordar com educação, eu vou estar ali com educação. Vai da forma com que a pessoa se apresenta.

[Mirella] Eu me respeito, você me respeita e nós nos respeitamos.

[Karol] E vocês, como um casal, andam de mão dada?

[Mirella] Eu e Darla somos mais reservadas. A gente não é de estar se agarrando na rua, até porque a gente já tem 8 anos de relacionamento. Nessa fase você já não está mais, né… (risos) A gente não vive uma sem a outra, tem dificuldade de dormir separada uma da outra.

[Darla] Inclusive temos responsabilidades. Eu, todo dia, acordo às 7 horas da manhã, para às 8 horas sair de casa e só voltar às 5 da tarde. Isso gera uma certa distância e saudade. Então, quando eu chego em casa, nós temos milhares de coisas pra conversar e fazer.

[Mirella] Até isso, na terapia, foi uma ajuda, porque a saudade é importante para o relacionamento. Quando a gente fica um pouquinho distante, a gente fica louca pra se encontrar e conversar. Agora, em sociedade, a gente é discreta. Acho que a nossa vida particular pertence a nós. Ninguém tem o direito de se meter e se alguém se meter no meu íntimo, eu vou ter que me impor. Eu não permito nem à sociedade, nem a ninguém isso.

[Darla] Isso, hoje, com 8 anos de casadas. Porque com 2 anos de casadas, as pessoas faziam perguntas muito indiscretas e a gente não sabia o que fazer.

[Mirella] A gente sempre ouvia isso: “como vocês se relacionam?” Aí eu fazia umas brincadeiras assim: “ah, a gente roça a bunda uma da outra” (risos), só pra tirar a chacota. Mas hoje, eu acho isso tão invasivo, não admitiria. Hoje em dia, se eu recebesse essa pergunta ou eu iria deixar a pessoa muito constrangida ou iria dar uma bronca nela, que nunca mais a pessoa ia se dirigir a mim ou a ninguém de qualquer jeito.

Como foi se descobrir? Você falou que teve uma mãe hétera, que não via como uma possibilidade poder se relacionar com uma outra travesti. Como foi essa descoberta para vocês duas? E o que é especial e só existe na relação entre duas travestis?

[Mirella] Imagina que eu sou uma travesti que veio de dentro do mato, praticamente. A Darla já é daqui, ela já tinha uma mente aberta, igual à Luana. Eu não, eu tinha uma mente mais fechada. A chave pra eu entender que eu tinha a possibilidade de viver como eu quisesse foi eu olhar pra dentro de mim e entender que eu me sentia atraída por ela. Então, isso é uma coisa existente, aconteceu dentro de mim, eu não posso negar. E tem outra coisa, também: eu nunca permiti que ninguém vivesse a minha felicidade. Tudo que me fizer feliz, eu vou fazer e vou viver, não vai ter ninguém que vai se meter com isso. A partir daí que a gente começou o nosso relacionamento.

[Darla] Quando eu conheci os meus sogros, eu levei a Mirella daqui até Ubatuba de carro e no meu primeiro contato, eles foram muito receptivos. Primeiramente, eu levo a filha deles de volta para casa, sã e salva. E quando ela diz que tem um relacionamento com outra travesti, por eles serem de um lugar onde eles não tinham informação e uma mente tão aberta, eles apresentam uma represália. Só que o amor é para além disso. Eu faço bem para ela e ela faz bem para mim e as aceitações vão vindo. Hoje em dia, se ela grita comigo na frente do pai ou da mãe dela, eles ficam contra ela e do meu lado. (risos)

[Mirella] É muito engraçado. Quando a gente briga, eles se metem e falam assim.: “é normal, a  gente também briga”.

[Darla] É muito bonitinho. E os pais conhecem ela muito melhor do que eu, né? A minha sogra, fala assim: “ela está estressada. Calma, daqui a pouco, você vai lá.” No começo do nosso relacionamento, a gente brigava muito por não entender os fatores: o ciúme, o trabalho, a vida pessoal, a insegurança. Eram umas brigas chatas. Eu acho que eu e a Mirella, só estamos juntas porque, realmente, a gente se ama.

[Mirella] E o amor se constrói, né? A paixão é uma coisa do começo, aquele ciúme, aquela emoção. O amor é a evolução.

[Darla] Ela é de peixes, eu sou de áries. Eu sou aquela pessoa explosiva, muito intensa. Eu falo mesmo. Mas, na hora do carinho eu sou muito romântica, protetora e leal. Eu levo chocolates… (risos)

[Mirella] Coisa que a gente pisciana já não tem, né? (risos)

[Darla] Não, pra demonstrar afeto é uma merda! (risos) Mas, também, quando demonstra, a gente sabe que é verdadeiro. Eu não sei se é certo dizer isso, mas posso dizer que, hoje em dia, eu tenho muito mais confiança na Mirella do que na minha própria mãe. A Mirella me tirou do fundo de um poço. Só eu sabia onde eu estava. Se não fosse ela, eu não seria Darla. Então, a minha trajetória e a minha vida é voltada à Mirella porque ela me mostrou um lado que eu não conhecia.

[Mirella] Duas personalidades totalmente diferentes. Eu trago isso pra ela, ao mesmo tempo, ela também me traz. A Darla é mais dura, mais ríspida e a gente tem que ser assim, às vezes. A vida não é brincadeira, então eu não posso ser muito boazinha. Eu cheguei de Ubatuba muito inocente, muito boazinha e a Darla já me traz esse lado, que não pode ser assim tão bobinha. A gente se completa.

[Darla] Eu sou daquelas que trabalha dentro da política do certo.

[Mirella] Eu já sou mais coração, porque coração é o coração.

[Darla] As pessoas falam que a Mirella é maravilhosa, porque ela realmente é muito coração. Eu já sou bem ríspida. Comigo tem que seguir a doutrina, as regras.

[Mirella] Às vezes, você consegue ajudar alguém sendo um pouco mais dura e falando “não” e, ao contrário disso, você não está ajudando. A Darla tem essa personalidade. 

[Darla] Por exemplo, eu chego no Casarão de manhã. Eu vou sentar aí, onde você está, aí fulana discutiu com a fulana. Eu chamo as duas: “vamos resolver”. No final de tudo, as duas estão se abraçando! (risos) A gente tem que chegar num denominador comum para que essa coisa não se estenda. Tem que ter um mediador e tem que pedir desculpa, não é vergonha pedir desculpa. A gente mora dentro de uma casa, a gente não pode ter represálias uma da outra. O mundo já é contra a gente. Ninguém é melhor que ninguém. Escutam, tenham divergência, mas se entendam e respeitem uma à outra. Você deve respeitar, como a sociedade deve respeitar.

[Mirella] Falando das travestis, não dá pra colocar todas as travestis dentro de uma caixinha, a gente é diferente uma da outra, somos indivíduos. Então a gente tem que entender cada uma pra gente poder ajudar.

Vocês são monogâmicas ou não? É um relacionamento fechado, só vocês duas, ou é aberto?

[Darla] A gente abre! (risos) Mas vai muito do nosso momento. Eu sou muito tímida, dentro das teorias do sexo, da individualidade. Ela já é mais fogosa.

[Mirella] Às vezes, eu levava a Darla pra atender algum cliente comigo e ela não conseguia reagir. A gente abre, só que eu sou mais ciumenta. Pode rolar tudo, mas não pode rolar sentimento.

[Darla] Eu sou muito fechada, mas se eu me abro, eu vou me abrir de uma vez. (risos) Isso, às vezes, pode criar uma idealização dentro da cabeça da pessoa.

[Mirella] Eu sou diferente dela, eu levo isso de uma maneira mais natural. Não sei se é pelo tempo de de profissão que eu tenho dentro da prostituição. Ah, a gente usa muito os homens, tá? É, acho que só são bons pra usar.

[Darla] Eu aprendi com a Mirella que os homens poderosos são os melhores. 

[Mirella] Apesar de puta, a travesti pode ser muito refinada e chegar em lugares que você nunca imaginou, através de homens poderosos. Eu, enquanto travesti, puta, uso a sensualidade. Eu sou casada com outra trans, adoro homem, mas eu gosto de homens poderosos. Não pode ser qualquer homem não, senão eu que vou ter que bancar ele, entendeu? (risos)

[Mirella] A travesti mexe com o extremo íntimo do homem. Então, quando uma travesti está perto de um homem, ela faz ele se questionar se ele realmente é homem. É a hora que a gente age, a gente tira tudo dele. Existe uma insegurança dele mesmo como homem.

[Darla] Ele sente a insegurança: “Eu fui atraído por essa travesti. Eu sou homem ou não?”

[Mirella] E ali, automaticamente, o maior sentimento do ser humano é o medo. A sexualidade do homem está em jogo e ele sente o medo de ser exposto. A travesti entra nesse lugar pra mexer com o extremo íntimo do ser humano. E já que a gente está ali, vamos fazer direito. Eu adoro encantar os homens. (risos)

[Darla] Eu tenho clientes, com quem eu saio, e não faço nada. Um dia desses, um cliente saiu do Leblon, veio aqui e ele queria que eu ficasse na mesma posição de uma foto, fumando um cigarro, porque ele achava prazeroso, aquele ideal de mulher empoderada.

[Mirella] Pra você ter noção de como que mexeu com a cabeça dele, ele veio atrás dela. Ele queria ela do mesmo jeito!

[Darla] Eu tive que me agachar no chão, ficar na posição da foto e ganhava pra isso. 

[Mirella] Eu acho que o triste é a droga junto com a prostituição. Cocaína, outras drogas e bebida junto com prostituição não dá certo. Agora, se a mulher usa os homens pra se empoderar, meu amor… A gente sabe que as mulheres estão em grandes padrões, mas os homens ainda continuam mandando no mundo. Então, é neles que a gente tem que focar pra chegar lá.

Qual o segredo e o que é importante no relacionamento, que faz vocês ficarem tanto tempo juntas?

[Mirella] É uma escolha. Quando se gosta, se ama alguém, vão ter vários motivos para desistir daquilo. Então, ficar junto, é uma escolha. Mas aí, vem com respeito à individualidade de cada uma. A Darla é diferente de mim, eu sou diferente dela e a gente aprendeu a se respeitar. A Darla tem uma paciência comigo. E eu admiro muito esse cuidado.

[Darla] Eu sou muito carinhosa e eu sei que o simples, pra Mirella, cativa muito mais. Sabe o que é o simples? Chegar em casa com uma bisnaga de pão desse tamanho. (risos) Um café… Isso deixa ela numa felicidade! (risos) Porque 8 anos não é 8 dias. Eu sei quando ela acordou bem humorada, quando ela não acordou bem humorada, eu sei os horários certos de mandar mensagem. E a mente dela é uma mente de TDAH, então ela pensa milhares de coisas e soluções.

[Mirella] E ela tem essa compreensão. Isso é incrível numa parceria, de compreender, né?

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Giselle e Michelli
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